sexta-feira, junho 30, 2006

Batucar

“Queria ser pandeiro pra sentir o dia inteiro a sua mão na minha pele a batucar.”

Caetano Veloso, “Verdade Tropical”

quinta-feira, junho 29, 2006

Do Hávamál

Do “Hávamál”:

Um hóspede deve saber
quando partir – não ficar
continuamente no mesmo lugar.
Se nunca foi tão querido
menos virá a ser pouco a pouco, se a tempo não souber partir.

Hans Christian Anderson, “Uma Visita em Portugal em 1866”

quarta-feira, junho 28, 2006

Reagir

Primeiro, vieram buscar os comunistas, e eu não reagi porque não era comunista. Depois, vieram buscar os judeus, e eu não reagi porque não era judeu. Vieram a seguir buscar os sindicalistas, e eu não reagi porque não era sindicalista. Vieram então buscar os católicos, e eu não reagi porque era protestante. Por fim, vieram buscar-me a mim e por essa altura já não havia ninguém para reagir.

Palavras do pastor alemão Martin Niemüller sobre a ascenção de Hitler

terça-feira, junho 27, 2006

Globalização

Festejamos a cultura do donut: é doce e sabe bem mas tem um buraco no lugar do coração.

Salman Rushdie, “O Chão Que Ela Pisa”

segunda-feira, junho 26, 2006

Fogo do Inferno!

Foi com a tia Joana, ela dizia-me que o céu ficava por cima e por baixo da terra ficava o fogo do inferno. Mas um dia, estávamos na praia, eu entretinha-me a fazer uma cova na areia. E a certa altura começou a haver água, eu tinha ali a prova que o fogo debaixo da terra não era verdade. Tia Joana encolhida no toldo ia rezando as contas pelos pecados de indecência que ia vendo na praia, fui ter com ela orgulhoso da minha heresia.
- Não há fogo! Tia Joana, debaixo da terra há água, eu fiz uma cova e vi! Não há fogo do Inferno!
- Cale-se, seu herege. Seu bardino! Há fogo mas é nas profundezas do inferno que é para onde você vai se disser essas coisas horríveis.

Vergílio Ferreira, “Para Sempre”

domingo, junho 25, 2006

Calçada Portuguesa

A calçada, pelo menos, sorri-nos a cada passo, com desenhos complexos bordados em pequenas pedras. Continua a espantar-me esta extrema delicadeza dos Portugueses: estender rendas de basalto e granito onde a multidão pisa – e cospe.

Pedro Rosa Mendes e João Francisco Vilhena, “Atlântico – Romance Fotográfico”

quarta-feira, junho 21, 2006

Mediterrâneo

Tenho pena, por exemplo, que o Mediterrâneo tenha perdido o seu carácter de lugar comum e se tenha transformado numa fronteira.

Arturo Pérez-Reverte

terça-feira, junho 20, 2006

Cabeça de vento !

Aliás, entre o facto de escrever e o de viajar há realmente algumas relações secretas. A primeira que nos vem ao espírito é a de que ambas as actividades atestam uma espécie de instabilidade essencial. Em que fontes bebe essa tão misteriosa energia que faz nascer e acompanha todo o trabalho de escrita? Temos de confessar que é uma grande desordem interior. Na origem desta prática megalómana e associal está uma “intranquilidade” permanente, a incapacidade de encontrar ou aceitar um lugar no mundo, no seu tempo, na sociedade. Escrever, é coisa que começa pelo sentimento de estar deslocado, sem eira nem beira, sem fé nem lei. (...) É preciso repeti-lo, já que temos tendência para o esquecer: a literatura não é uma actividade mundana, ela implica um desacordo com o mundo. Enfim, um escritor é quase inevitavelmente alguém desiquilibrado, “um cabeça de vento”.

Olivier Rolin, “O Meu Chapéu Cinzento”

segunda-feira, junho 19, 2006

domingo, junho 18, 2006

Vila Real

Toda a cidade tem recantos maravilhosos: é preciso sabê-los encontrar (...) Em Vila Real não há recantos assim e os que havia foram sendo destruídos por Câmaras, engenheiros de Câmaras, uns nabos que merecem a condenação da história, ao menos umas boas chamuscadelas no Purgatório, pelas maravilhas que destroem, como a Capela de Santo António, pelas árvores que inultimente derrubaram, pelos aleijões de cimento que vão erguendo apertando ruas, tapando o Sol e outras coisas luminosas que ainda restam, ao sabor e a mando de empreiteiros que ligam tanto a uma flôr como aos carneiros: devoram-nos. Em Vila Real, ainda assim, pode-se dar um passeio ao domingo pelas montanhas circundantes, a menos que surja por aí uma cáfila de empreiteiros de montanhas a borrar aquilo tudo.

António Cabral, “Memória Delta”

sexta-feira, junho 16, 2006

Da China


Por exemplo: ao temor dos Chineses por tudo o que seja falar no vazio, por tudo o que seja “desqualificar as coisas em proveito das palavras”. Há neurose no nosso crescente delírio verbal, na proliferação de símbolos que dia a dia nos afasta do concreto.

Fernando Namora, “Sentados Na Relva”

quinta-feira, junho 15, 2006

Relação a três

Porque uma relação, como sabes e se não sabes digo-te eu agora, uma relação é sempre a três, não a dois. Não somos só nós e outra coisa, é também ela, a relação.

Vergílio Ferreira, “Em Nome da Terra”

quarta-feira, junho 14, 2006

Velho Mundo



Inúmeros amantes se têm abraçado e beijado nos aparados relvados de encostas montanhosas do Velho Mundo, nos musgos das fontes, à beira de córregos higiénicos e adequadamente situados, em bancos rústicos à sombra de carvalhos com o tronco cheio de iniciais e em muitas cabanas noutras tantas florestas de faias. Mas nos ermos da América não é fácil ao amante de ar livre entregar-se ao mais antigo de todos os crimes e passatempos. Plantas venenosas escaldam as nádegas da sua amada, inúmeros insectos picam as suas; coisas aguçadas do solo florestal arranham os joelhos dele, insectos mordem os dela – e por toda a parte há um restolhar contido de potenciais serpentes, enquanto as sementes carangueijiformes de ferozes flores se agarram, numa repugnante crosta verde, a peúgas pretas e com ligas, de homem, e a descambados soquetes brancos.

Vladimir Nabokov, “Lolita”

terça-feira, junho 13, 2006

Contra os canhöes marchar...




Decerto que os homens corromperam um pouco a natureza, porque não nasceram lobos e tornaram-se lobos. Deus não lhes deu nem canhões de vinte e quatro nem baionetas, e eles imaginaram canhões e as baionetas para se destruírem.

Voltaire, “Cândido”

segunda-feira, junho 12, 2006

Trivial


Esta é a primeira vez que cá estou desde a última vez que cá estive...

Almirante Américo Thomaz, numa visita de Estado a Angola [Trivial Persuit]

domingo, junho 11, 2006

Um sorriso


O sorriso

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade

sábado, junho 10, 2006

Uma outra espécie de homem


Perdi o amor por essa espécie de terra, pensou, já não me interessa senti-la entre os dedos. Já não quero o verde e o castanho, mas o amarelo e o vermelho; não a humidade, mas a aridez; não a sombra, mas a luz; não o macio, mas o duro. Estou a transformar-me numa outra espécie de homem, se é que há duas espécies de homens. Se me cortassem, disse, estendido os pulsos, o sangue não jorrava; havia de infiltrar-se nos póros e secar. Cada dia que passa, torno-me mais pequeno, mais duro e mais seco. Se morresse aqui, à entrada da caverna, ao olhar para a planície, com a cabeça apoiada sobre os joelhos, um dia seria levado pelo vento e mantido intacto, como alguém sufocado pela areia do deserto.

J.M. Coetzee, “A Vida e o Tempo de Michael K.”

quinta-feira, junho 08, 2006

Apicultura


A heresia habitual consiste em negar que existe um deus que nos criou. Uma heresia muito mais interessante é aceitar a possibilidade de que um deus nos tenha criado e depois dizer que não há qualquer razão para ficarmos impressionados com isso. E muito menos gratos.
Se existe um deus, compete-nos dizer não.
Se existe um deus, compete ao ser humano ser a sua negação.
Recomeçamos. Não nos rendemos.

Lars Gustafsson, “A Morte de Um Apicultor”

TêVê


Para que uma mensagem publicitária seja recebida, é necessário que o cérebro de um telespectador esteja disponível. As nossas emissões têm por vocação torná-lo disponível: ou seja, diverti-lo, sossegá-lo para o preparar entre duas mensagens. O que nós vendemos à Coca-Cola, é o tempo disponível do cérebro humano.

Patrick Le Lay, presidente director-geral do canal privado TF1

terça-feira, junho 06, 2006

Los poetas


Los poetas llamados populares e impropriamente nacionales, y los poetas llamados propriamente cultos o cortesanos. Gentes que hacen su poesía andando los caminos o gentes que hacen su poesía sentados en su mesa, viendo los caminos a través de los vidros emplomados de la ventana.

Federico García Lorca, “Conferências II”

segunda-feira, junho 05, 2006

Stones


stone we dei botam wata, no say wen rain de cam; ou seja, uma pedra debaixo de água não sabe que está a chover (provérbio crioulo da Serra Lea)

in “Nação Crioula”, José Eduardo Agualusa

quinta-feira, junho 01, 2006