segunda-feira, julho 31, 2006

Um povo

As fotografias atestam a existência de um crime alemão, em relação ao qual a Humanidade não conhece precedente histórico, mas não mostram os criminosos. E, embora até hoje, não saiba qual foi o papel do meu pai nesse crime, para mim uma coisa é certa: só um povo inteiro, e não um indivíduo, está em posição de exterminar todo um povo.

Peter Schneider, Papá”

domingo, julho 30, 2006

Bons sonhos!

Durante muito tempo, acreditei – e isto talvez seja a minha versão de Sir Darius Xerxes Cama de uma quarta função da exterioridade – que em todas as gerações há umas tantas almas, chamemos-lhes felizes ou desgraçadas, que não nasceram para se integrarem, que vieram a este mundo meio separadas, sem uma ligação forte a uma família, a um local, a uma nação ou a uma raça; que pode até haver milhões, biliões de almas assim, talvez tanto de integrados como de não integrados; que, em suma, esse fenómeno pode ser uma manifestação da natureza humana tão “natural” como o seu oposto, mas que ao longo da história dos homens tem sido frustado por falta de oportunidades. E não só: porque as pessoas que dão mais valor à estabilidade e que temem tudo o que seja transitório, incerto, mutável, construíram um poderoso sistema de estigmas e tabus contra o desenraizamento como força destabilizadora e anti-social e assim conformamo-nos a maior parte das vezes, fingimo-nos motivados por lealdades e solidariedades que realmente não sentimos, escondemos as nossas identidades secretas sob a pele falsa das identidades marcadas com o selo de aprovação. Mas a verdade escapa-se nos nossos sonhos; sózinhos na cama (porque todos estamos sós na noite, mesmo quando não dormimos sós), elevamo-nos, pairamos, fugimos. E naqueles sonhos acordados permitidos pela sociedade, os nossos mitos, a nossa arte, as nossas canções, celebramos aqueles que não pertencem ao grupo, os diferentes, os fora-de-lei, os excêntricos. Aquilo que proibimos a nós mesmos, pagamos bom dinheiro para admirar num teatro ou num cinema ou nas folhas de um livro. Nas nossas bibliotecas, livrarias, ou locais de diversão fala-se verdade. O vadio, o assassino, o rebelde, o ladrão, o mutante, o banido, a mascâra. Se não reconhecêssemos neles as necessidades que não podemos preencher, não os inventaríamos vezes e vezes sem conta, em cada sítio, em todas as línguas, em todos os tempos, a cada passo.
Assim que houve navios, corremos para o mar, atravessando oceanos em barquinhos de papel. Assim que houve automóveis, fizemo-nos à estrada. Assim que houve aviões, voámos como setas até aos cantos mais remotos do planeta. Agora sonhamos com o lado escuro da Lua, as planícies rochosas de Marte, os anéis de Saturno, as profundezas interestrelares. Pomos em órbita fotógrafos mecânicos, ou mandamo-los em viagem sem regresso até às estrelas, comovemo-nos até às lágrimas com as maravilhas que eles transmitem, sentimo-nos pequenos perante as grandiosas viagens de galáxias distantes que parecem sustentar as nuvens do céu, damos nomes a rochedos extraterrestres como se fossem animais de estimação. Procuramos a urdidura do espaço, a demarcação dos limites do tempo. E é esta espécie que vive na ilusão de que gosta de ficar em casa e de ter – como se diz? – laços.
Esta é a minha opinião. Ninguém é obrigado a aceitá-la. Talvez não haja assim tanta gente como nós, ao fim e ao cabo. Talvez sejamos de facto destabilizadores e anti-sociais e devêssemos ser proibidos. Todos temos direito às nossas opiniões. Eu só digo durmam bem, queridos. Durmam bem e bons sonhos.

Salman Rushdie, “O Chão Que Ela Pisa”

sábado, julho 29, 2006

Educação

Não consigo compreender por que, sendo as crianças tão inteligentes, os adultos são tão estúpidos.
Deve ser fruto da educação.

Alexandre Dumas, filho

sexta-feira, julho 28, 2006

Pequenas coisas

As coisas pequenas pertencem-nos de verdade. Escusamos de as deixar, podemos levá-las numa caixa de sapatos.

Truman Capote, “A Sangue Frio”

quinta-feira, julho 27, 2006

Produzir um rico

Eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?

Almeida Garrett

quarta-feira, julho 26, 2006

Um perturbador de Deus

É agnóstico?
Não verdadeiramente. Sou o que os russos chamam um perturbador de Deus, estou sempre a incomodá-lo.

Robert Dessaix

terça-feira, julho 25, 2006

Matas, morres!

Aí tes o meu corasón,
si o queres matar ben podes;
sero, como estás ti dentro,
tamén, si ti o matas, morres.

Rosalía de Castro, “Cantares Gallegos”

segunda-feira, julho 24, 2006

Nova espiritualidade

Mas era evidente para Dorian Gray que a verdadeira natureza dos sentidos nunca fora compreendida, e que permaneceram indomáveis e animalescos unicamente porque o mundo procura submetê-los pela abstinência ou matá-los pela flagelação, em vez de procurar transformá-los em elementos de uma nova espiritualidade, em que um elevado instinto de beleza seria a característica dominante.

Oscar Wilde, “O Retrato de Dorian Gray”

domingo, julho 23, 2006

Nascer do sol

O que fizeram esses brancos foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acamparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós.

Mia Couto, “O Último Vôo do Flamingo”

sexta-feira, julho 21, 2006

Macau

os jardins, de manhã muito cedo, à hora a que os velhos levam os seus pássaros ao passeio. Penduram as gaiolas nos ramos das árvores ou pousam-nas sobre a relva e ficam gravemente, sentados num banco, a ouvir os trinados.

João Aguiar, “Os Comedores de Pérolas”

quinta-feira, julho 20, 2006

Niepceótipos

Façamos justiça aos que são injustamente esquecidos. A primeira fotografia “permanente” foi tirada em 1826 em Paris, por Joseph Nicephore Niepce, mas o lugar dele foi ocupado na nossa memória colectiva por aquele que veio a ser o seu colaborador, Louis Daguerre, que vendeu a invenção, a caixa mágica, a câmara, ao governo francês, após a morte de Niepce. Deve ficar pois estabelecido, sem equívoco, que os célebres daguerreótipos nunca poderiam ter sido criados sem os conhecimentos científicos de Niepce, que excediam em muito os do seu parceiro.

Salman Rushdie, “O Chão Que Ela Pisa”

quarta-feira, julho 19, 2006

Indignações

Indignava-o que, depois de vinte séculos de cristianismo, ainda as crianças amigas de Jesus, as crianças a que se fazem poesias e se nega o pão, andassem vestidas de farrapos, minadas de tuberculose, sem possibilidade de ir à escola e já condenadas, aos 5 ou 6 anos, a procurarem nos recados ou na mendicidade o meio de subsistirem; se havia um Deus indiferente a tais brutalidades, ele não merecia senão o desprezo e o insulto de todo o homem com inteligência e coração. não cria que Deus precisasse, para apurar as almas, de lhes enviar torturas sobre torturas, com tais refinamentos, com tal dureza, que não podia ver senão como um carrasco impiedoso; se existisse um Deus desta natureza, então vinha de mais alto a fonte do mal, porque ele próprio seria no mundo um instrumento do mal.

Agostinha da Silva, “Textos Pedagógicos I”

terça-feira, julho 18, 2006

Futebol

Hay una larga tradición urbana de chivos expiatórios: las persecusiones e agresiones contra judíos, negros, árabes, gitanos, sudacas o xarnegos permiten que los frustados y agresivos cidadanos empiecen a repartir golpes contra minorias débiles y sin respuesta. Otra variante eficaz del objeto substitutivo es el deporte. La ritualización de los actos agresivos y el auto control permiten el simulacro de una luta, de una agresión entre deportistas, en la que el público participa y una nueva geración no se contenta con la violencia simulada, sino la materializa en la gradas o fuera del campo, irritados porque han comercializado su válvula de escape.

Manuel Vazquez Montálban, “El Delantero Centro Fue Asesinado el Entardecer”

segunda-feira, julho 17, 2006

Nadar

- Se não sabes nadar, porque te atiras à água?
- Porque nado de outra maneira. Porque me estou bugiando para as bóias e os nadadores convencionais. Porque em última análise não nascemos para nadar. Aí tens. Nascemos para ir ao fundo.

Carlos de Oliveira, “O Aprendiz de Feiticeiro”

domingo, julho 16, 2006

Alentejo

Tem esta província um fundo lastro cultural. Tem esta província uma longa crónica de amarguras e odisseias, mas preversamente enfrentadas com raro estoicismo e não menos rara dignidade, timbres do homem alentejano, como se testemunham nas personagens que habitam a nossa literatura. Tem esta província uma noção muito sua de espaço e do tempo. Nunca, como aqui, me foi dado aperceber tão soberano desdém pela impaciência, pelo falso, pelo efémero. Esta província, onde até o silêncio é altivo e o labor solene, sempre reservou e reservará surpresas a quem terá ignorado o que nela é identificação quase mística com o que, nas coisas e nos seres, existe de incompatível com a frenética alienação do transitório.

Fernando Namora, “Dispersos II”

sábado, julho 15, 2006

Amor é...

A amizade é, acima de tudo, certeza – é isso o que a distingue do amor.

Marguerite Yourcenar, “O Golpe de Misericórdia”

sexta-feira, julho 14, 2006

Local estratégico

A fazer fé nas narrações autobiográficas dos cientistas, [a máquina de café] é um local estratégico em todos os laboratórios e centros de investigação. A máquina de café, que proporciona encontros de investigadores de disciplinas ou horizontes diferentes, favorece fecundos cruzamentos de ideias ou informações que, por vezes, dão origem a imprivisíveis descobrimentos ou colaborações.

Isabelle Stengers e Bernardette Bensaude-Vincent, “100 Palavras para Conhecer as Ciências”

Ecuménico

Jamais haverá uma fé comum a todos. Como é que um ladrão e uma pessoa honesta podem acreditar na mesma coisa? O cristianismo meteu-se por esse caminho, e não foi o único. Uma crença comum... Aí está algo tão desejado quanto impossível, sem nenhuma substância.

Ievgueni Ievtuchenko, “Ardabiola”

quarta-feira, julho 12, 2006

Manta de retalhos

As mulheres de Navajo, quando tecem as mantas, deixam na ponta um buraquinho para a alma sair; não tecem a sua alma juntamente com a manta. Sempre me pareceu que a Inglaterra tecia a alma nas suas fábricas, e em tudo o que fazia, sem deixar o buraco para ela sair... Por isso toda a sua alma está agora nas mercadorias e em mais nenhuma parte.

D. H. Lawrence, “A Serpente Emplumada”

terça-feira, julho 11, 2006

Cavalo bravo

Dominar-me, quando posso
refrear cavalos bravos
e metê-los num curral,
não é esse o meu destino.

Eu sou um cavalo bravo.
Não é esse o meu destino

Ruy Cinatti, “Lieder für Timor”

segunda-feira, julho 10, 2006

Leituras

Lia de pé, como era seu hábito ("Há livros que só se ouvem quando nos sentamos. São os que têm a voz da submissão. Não se entendem de pé").

Vergílio Ferreira, “Apelo da Noite”

domingo, julho 09, 2006

Loiros da Europa


Apresenta-se, mostra-se a um japonês um pedregulho. Olha-o, fita-o, estuda-o. Para ele, o pedregulho tem feições, fisionomia individual, implicando a ideia de atributos sentimentais, pois há pedras tristes, pois há pedras sorridentes, pois há pedras amigas, pois há pedras arrogantes: cada pedra tem o seu carácter, talvez pudesse dizer: a sua alma. (...) Não hesitará o japonês em distinguir-lhe a face anterior, e a face posterior, e a parte superior e a parte inferior, não cometendo a irriverência de pousá-lo numa posição ridícula, ou inconveniente, ou contrária às leis da estética, de cabeça para baixo, e pernas para o ar, por exemplo ... se a frase aqui é permitida, tratando-se de um pedaço de rocha bruta, ao qual nós, loiros da Europa, não concedemos o direito de ter cabeça e de ter pés.

Wenceslau de Moraes

sábado, julho 08, 2006

Silêncio

Quando eu era rapariguita, tinha a certeza absoluta de que as árvores e as flores eram como as pessoas e os animais. Pensavam coisas e conversavam umas com as outras. Bastaria que nós conseguíssemos esvaziar a cabeça dos outros sons, que ficássemos quietos e prestássemos muita atenção. Mas nunca conseguimos fazer um silêncio absoluto...

Truman Capote, “A Sangue Frio”

sexta-feira, julho 07, 2006

Benjamim


o nome de Benjamim, que quer dizer filho da minha mão direita

José Saramago, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”

quarta-feira, julho 05, 2006

Confissão

Se porventura acreditasse num deus qualquer, continuaria a detestar a ideia de uma confissão; estar ajoelhado num dos vossos confessionários: expor-me perante outro homem. Deve desculpar-me, mas a meu ver é mórbido ... até mesmo pouco viril.

Graham Greene, “O Americano Tranquilo"

terça-feira, julho 04, 2006

Olhar de gato

A diferença entre usar óculos e não usar era mínima, de maneira que deixei de usar óculos. Vejo as figuras, as silhuetas, com uma percepção que me parece bastante estética. Mais do que visse lindamente, não é?
H.C. – É olhar de gato?
[Ramos Rosa diz que gosta de dias nublados e fala de um par que viu na esplanada do Centro Cultural de Belém. “Fiquei a olhar para o diálogo das mãos deles.”]

António Ramos Rosa, em entrevista a Hélia Correia e Alexandra Lucas Coelho

segunda-feira, julho 03, 2006

La luna


Cuando sale la luna
el mar cubre la tierra
y el corazón se siente
isla en el infinito

Federico Garcia Lorca, “Canciones 1921-1924”

domingo, julho 02, 2006

Perpetuação

os filhos, são uma invenção da nossa fraqueza para compensar a morte, o modo mais barato de se ser eterno

Vergílio Ferreira, “Em Nome da Terra”

sábado, julho 01, 2006

Fotografia de família

Todas as famílias têm fotografias assim. Enquanto pousavam, estavam todos protegidos pelo espaço de alguns segundos e estes segundos tornaram-se uma eternidade.

Patrick Modiano, “Dora Bruder”