segunda-feira, novembro 30, 2009

Gravidez precoce...


Se eu soubesse que estava a fazer um filho, bem que não o tinha feito, eu estava a satisfazer-me com um corpo que em mim se satisfazia e isso me dava prazer que prazer eu estava dando, aconteceu um filho, que lhe havia de fazer, se houvesse a consciência de que se está a fazer um filho, tanto eles como elas fugiam da cama a sete pés e não seria tão cedo que cairiam noutra.
Manuel Mengo, “O Que Restou da Sereia”

domingo, novembro 29, 2009

Três bichos de tempo


São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz. Porque a noite as usas fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventora de sombras. A manhã essa, é um caracol, em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do meio-dia.
Mia Couto, “O Fio das Missangas”

sábado, novembro 28, 2009

Os Criadores do Mundo


Ando irado contra os homens por vê-los esquecidos de que eles, e só eles, foram os criadores do mundo (sim , OS CRIADORES DO MUNDO) que arrancaram, linha por linha, conhecimento por conhecimento, morte por morte, deste caos de sombras, bichos, peixes e monstros vegetais. Mas hoje preferem dar-lhe o significado divino – que tanto convém aos poderosos – para concluírem que é impossível transformá-lo. Criaram-no, peça por peça, sonho por sonho, no decorrer de biliões e biliões de séculos e, agora, por sequência cómoda de terem herdado a injustiça, não ousam tocar-lhe. Mudar, só os automóveis, os aviões e os aparelhos de rádio. O resto é preciso que continue intacto até o abismo dos abismos sujos. Covardes!
José Gomes Ferreira, “Imitação dos Dias”

sexta-feira, novembro 27, 2009

Liberdade


Rupi jam vincula, dicas:
Num luctata canis nodum arripit, attamen illi,
Quum fugit, a collo trabitur pars longa catenae.
Quebrei os meus laços, dir-me-eis. Por acaso o cão que, após longos esforços, logra por fim escapar, não leva quase sempre consigo um pedaço da sua corrente? Pérsio, Sat, V, 158.

quinta-feira, novembro 26, 2009

Palavras para quê...


A jornalista Susana Torrão enviou a uma série de editoras um exemplar de “Até Ao Fim”, romance magnífico, e premiado, de Vergílio Ferreira. Mudou-lhe apenas o título (“Vigília”, um título bastante virgiliano), os nomes das personagens e o nome do autor. Apresentou o livro como obra de estreia de uma hipotética escritora Isabel de Sousa – e foi unanimemente recusado pelas editoras.

quarta-feira, novembro 25, 2009

Syngué sabour...


Na mitologia persa, chama-se “syngué sabour” a uma pedra mágica, a “pedra-de-paciência”, diante da qual as pessoas confessam as suas infelicidades e sofrimentos, até ao dia em que ela se desfaz, levando consigo a tristeza acumulada.

terça-feira, novembro 24, 2009

Hiper-realistas!


Até parecia um daqueles escritores hiper-realistas americanos que transformaram a javardice etílica e a caralhada fácil em expoentes máximos da literatura contemporânea.
José Xavier Ezequiel, “Fados & Desgarradas”

sexta-feira, novembro 20, 2009

Sempre, o primeiro dia do resto da nossa vida!


Omnem crede diem tibi diluxisse supremum:
Grata superveniet, quae non sperabitur, hora.
Imagina que cada dia é o último que para ti se ilumina, e agradecerás o amanhecer que já não esperavas. Horácio, Epist, I, 4, 13.

quinta-feira, novembro 19, 2009

O riso dos anjos!


Porque a vida de um homem neste mundo é uma coisa muito engraçada. Fala-se de anjos que choram; mas eu creio que, muitas vezes, hão-de acotovelar-se e rir a bom rir do que vêem cá por baixo.
Robert Louis Stevenson, “Catriona”

quarta-feira, novembro 18, 2009

Escola... ao longo dos tempos!


Zombava Dionísio dos gramáticos que cuidam de informar-se dos males de Ulisses e ignoram os seus próprios; dos músicos que afinam as suas flautas e não fazem o mesmo com os seus costumes; dos oradores que pregam a justiça e não a praticam. Se a nossa alma não segue melhor caminha; se não logramos dispor de um juízo mais são, mais estimaria que o meu escolar tivesse passado o tempo a jogar à bola; pelo menos, deste modo teria o corpo mais ágil. Vede-o ao voltar dos seus estudos, depois de ter empregado neles quinze ou dezasseis anos; acha-se incapaz e inábil para o exercício de qualquer profissão ou trabalho; a única coisa que se pode notar nele é que o latim e o grego, que aprendeu, o tornaram mais néscio e presunçoso do que era, ao abandonar a casa dos pais. Devendo possuir uma alma cheia, trá-la inchada; em vez de fortificá-la, contentou-se em inflá-la.
Montaigne, “Ensaios”

terça-feira, novembro 17, 2009

Mulheres... segundo Burowsky!


Elas tinham uma vantagem sobre nós: planeavam muito melhor a sua vida, eram muito mais organizadas. Enquanto os homens viam os jogos de futebol, bebiam uma cerveja ou jogavam Bowling, elas, as mulheres, pensavam em nós, concentravam-se, perscrutavam, decidiam – aceitar-nos, rejeitar-nos, mudar-nos, matar-nos ou simplesmente viverem connosco. No fim de contas, isto tinha pouca importância; não interessava o que elas faziam, nós acabávamos na solidão e na loucura.
Charles Burowsky, “Mulheres”

domingo, novembro 15, 2009

Sobre civilizações


E quando, no fim de contas, estiverem civilizadas as tribos de África, seriam elas por isso mais felizes? E quem sabe se a verdadeira civilização seria a da África e não a da Europa?
Júlio Verne, “Cinco Semanas Em Balão”

sábado, novembro 14, 2009

Amor


Chi puó dir com’égli arde, è in picciol fuoco | Não é muito grande o amor que pode exprimir-se. Petrarca, último verso do soneto 137 (tradução livre).

sexta-feira, novembro 13, 2009

Simplicidades


As pessoas que apenas retêm uma impressão das coisas a qual costuma ser quase sempre boa (pois parece existir uma qualquer virtude na simplicidade) são as que mantêm o equilíbrio no meio da corrente.
Virginia Wolf, “As Ondas”

quinta-feira, novembro 12, 2009

Escandaloso(a)


Ser escandaloso é um estatuto que se adquire ao ser lealmente o que nos apetece, ou estamos predispostos a ser e os outros censuram-nos por sermos aquilo que ardentemente eles queriam ser, mas não têm um mínimo de coragem, ou inconsciência, para arriscar e ser.
Manuel Mengo, “O Que Restou da Sereia”

quarta-feira, novembro 11, 2009

De que vale...


De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonho?
(Versos do menino que fazia versos)
Mia Couto, “O Fio das Missangas”

terça-feira, novembro 10, 2009

Presságios...


Cur banc tibi, rector Olympi,
Sollicitis visum mortabilus addere curam,
Noscant venturas ut dira per omina clades?
...
Sit subitum, quodcumque paras; sit saeca futuri
Mens hominium fati; liceat sperare timenti.
Porquê, soberano senhor dos deuses, juntaste às desditas dos humanos esta triste inquietação? Porquê fazer-lhes conhecer, mediante horrorosos presságios, os seus desastres futuros? Faz com que os nossos males nos colham de improviso, com que o porvir seja desconhecido para o homem, e com que este possa pelo menos esperar sem tremer! Lucano, II, 4, 14.

domingo, novembro 08, 2009

Capitalismo


A crematística é, segundo Aristóteles, a prática do comércio lucrativo, que acaba por esquecer o seu objectivo: a troca de bens pelo facto de serem úteis.

quinta-feira, novembro 05, 2009

De José Gomes Ferreira a José Saramago


Richard Dawkins: Há muitos anos que defende vigorosamente a irracionalidade da crença em Deus e o mal que esta crença inflige na sociedade

quarta-feira, novembro 04, 2009

Turismo


Em meu entender, esta intricadíssima arte de viajar pode resumir-se em dois estilos essenciais: o turístico, inerente a uma multidão de monstros de olhos muito abertos que olham, olham, OLHAM, com entusiasmo de rebanho esbaforido, para a superfície do brilho das coisas (o ideal seria cortar-lhes as pálpebras!), e o aristocrático – em que os homens dão ao mundo a honra de se deslocarem, para continuarem no empenho de desconhecê-lo. Uns buscam, passivos, o que lhes mostram. Os outros trazem em si o que depois fingem encontrar. Tudo isto, claro, desenrolado numa atmosfera de inutilidade magnífica de ilusões não preenchidas.
Mas o que mais divido os dois géneros – para além da resignada aceitação feliz do snobismo da «obra-prima» e do êxtase diante do «famoso» – é, sem dúvida, a idolatria pelas coisas, característica principal dos turísticos. A estes, presumo eu, até as próprias pessoas só interessam quando adquirem o aspecto e a indiferença de objectos, ou os usam para lhes enfeitarem a fome de quererem ser gente: barretes, peninhas, toucas, fitas, capuzes, tamancos... Bonecos de trapo e osso, em suma.
José Gomes Ferreira, “O Irreal Quotidiano”

terça-feira, novembro 03, 2009

HOLOGRAMA


Na rua, mesmo rente a uma casa, havia um papelinho rasgado de um livro a que ninguém prestava atenção. Ora, durante a noite, começou a ganhar raízes e a crescer com a frescura e cor de uma papoila em cujas pétalas se podia ler, mas ninguém lia: poemas. Ao outro dia o empregado da Câmara ía varrer aquilo para o lixo. Uma criança, porém, antecipou-se e levou a flor consigo. Ao chegar à Escola, reparou que tinha um livro na mão!
António Cabral, “Ouve-se Um Rumor”

domingo, novembro 01, 2009