domingo, dezembro 26, 2010

Dádiva do Brasil ao mundo...


Quanto a escolas, tudo o que há a dizer é que todas elas estão completamente erradas, senão quanto ao presente, pelo menos no que há a fazer pelo futuro; são escolas de ensinar, quando o brasileiro requer escolas que sejam, como a Vida, de aprender; são escolas de professores, quando deveriam ser escolas de alunos; são escolas de repetir, quando deveriam ser escolas de criar, são escolas que se não importam para nada nem com a realidade nem com o ideal brasileiro; são finalmente escolas que pesadamente existem, quando o ideal a que deve tender uma escola é exactamente aquele a que deve tender o Estado: o de não ser. E só uma economia que exista o menos possível, e só uma escola que exista o menos possível, podem ser a base de uma convivência humana que seja fundada sobre a fraternidade e não sobre a lei, sobre a liturgia e não sobre a conquista, sobre o predomínio da vontade de Deus e não sobre o predomínio da vontade do homem. Convivência que poderá ser a maior dádiva do Brasil ao mundo.
Agostinho da Silva, «A cultura brasileira», 57, n.º 5 (Lisboa, Setembro de 1958)

sexta-feira, dezembro 17, 2010

Paganismo Superior

- O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?
- O Quinto Império. O futuro de Portugal – que não calculo, mas sei – está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode vive a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-nos portuguêsmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma cousa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.
Fernando Pessoa, em entrevista a António Alves Martins (Revista Portuguesa, n.º 23-24, Lisboa, 13.10.1923)

domingo, dezembro 12, 2010

De série «B»


Imaginem que escrevo um romance sobre um locutor desportivo do Midwest, não muito bom no que faz, de quem ninguém gosta muito, mas que lá vai conseguindo uns trabalhinhos na rádio e na TV. Depois, ele vai para Hollywood à procura de emprego e torna-se actor: um mau actor, descuidado, sempre de série «B» e que ninguém leva a sério como actor. Fica famoso e, porque ao contrário dos outros actores tem muito tempo livre, torna-se presidente do sindicato dos actores de cinema. Ele é um péssimo presidente, mas isso parece não incomodar ninguém, e depois ele torna-se um péssimo governador do estado da Califórnia e, logo a seguir, um horrível Presidente dos EUA, mas um muito popular horrível Presidente dos EUA por dois mandatos. Se eu escrevesse este romance, as pessoas diriam que era inverosímil. De facto, a vida real pode ser tão estúpida que exclui qualquer sustentação. É um erro estúpido que um homem tão incapaz como Ronald Reagan tenha alguma vez chegado a ser o que quer que seja, incluindo um mau actor. Eu tenho de trabalhar bem mais e melhor do que isso para contar uma boa história.
John Irving, em entrevista a Filipa Melo (Ler – Livros & Leitores, n.º 96, Novembro 2010)

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Um momento...


Por vezes, um incidente insignificante, um odor quase imperceptível, lembra-nos, pelo espaço de um relâmpago, um momento preciso da nossa vida. É tão aguda essa impressão que procuramos agarrar-nos à recordação viva, mas, no momento imediato, nada nos fica na memória e ficamos incapazes de dizer em que tínhamos subitamente pensado.
Procuramos em vão e acabamos por perguntar-nos, à falta de resposta para as nossas dúvidas, se aquilo não fora uma reminiscência de um sonho, ou, quem sabe, de qualquer vida anterior?
Georges Simenon, “Maigret e o Inspector Cadáver”

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Dos açorianos...

Suponho que na América pouco se sabe dos Açores. De todos os passageiros do nosso paquete, não havia um único que soubesse o que fosse sobre estas ilhas. (...) A comunidade é principalmente portuguesa – ou seja, pobre, apática, modorrenta e preguiçosa (...) A população das ilhas perfaz cerca de 200 000 almas, quase todas portuguesas. Tudo está perfeitamente estabelecido, visto que a região já tinha cem anos quando Colombo descobriu a América. A colheita principal é o milho, que eles cultivam e moem tal e qual faziam os seus tetravós. (...) Os bois pisam as espigas de trigo, segundo os costumes do tempo de Matusalém. Não há um único carrinho de mão em toda a terra: levam tudo à cabeça, ou em coima das mulas, ou numa carroça com caixa de vime e rodas de madeira maciça cujos eixos giram em simultâneo com as rodas. Não há qualquer arado moderno naquelas ilhas, e nem uma só ceifeira. Todas as tentativas de introduzir essas ferramentas agrícolas falharam. Os bons católicos dos portugueses benzeram-se e pediram a Deus que os guardasse do desejo herético de quererem saber mais do que os seus pais antes deles. O clima é ameno; nunca têm neve nem gelo, e não há uma única chaminé em toda a povoação. Os burros e os homens, as mulheres, e as crianças da família comem e dormem todos na mesma casa, e apresentam-se sujos, cheios de bichos e extremamente felizes. As pessoas mentem e enganam os estrangeiros, e são terrivelmente ignorantes e não têm quase nenhum respeito pelos mortos: Por esta última característica bem se vê que são pouco melhores do que os burros com que dormem e comem.
Mark Twain, “A Viagem dos Inocentes” (1869)