domingo, maio 29, 2011

Come!

Coimbra, 6 de Abril de 1943
VOZ
Era o céu que sorria nos seus olhos,
Eram junquilhos trémulos aos molhos,
As flores do rosto que eu beijava.
Fresca e gratuita como um hino à lua,
Nua,
Era um mundo de paz que se entregava.

Oh! perfume da Vida! – gritei eu.
Oh! seara de trigo por abrir,
Quem te fez todo o pão da minha fome?

Mas, os seus braços, longos e contentes,
Só responderam, quentes:

- Come.
Miguel Torga, “Diário II”

quarta-feira, maio 25, 2011

Construir um céu...

(...) a sua concepção de um Deus que só aparece a governar e a punir, de uma vida interior de perpétuo temor diante uma divindade implacável, o que permite que, ao mesmo tempo, os ritos percam todo o espírito que no princípio os animava e sejam apenas as secas cerimónias que nada significam no progresso espiritual do crente; é um Deus de sacrifício, de amor e de esperança o que pode manter sempre viva uma corrente religiosa, o que pode erguer o homem acima de si próprio, elevá-lo pelo esforço da alma, não o deixar cair no absoluto desespero ou na já indiferente, maquinal existência dos forçados que remam nas galeras; é um espírito que anima todo o Universo e que percebe no seu conjunto todo o fluir e refluir a que chamamos qualidade se defeitos, alegria e sofrimento; é um espírito que voluntariamente, num cato supremo da sua divindade, se limita para nos criar, para nos animar e a todo o mundo em volta, e limitando-se talvez mais para que possamos acompanhá-lo e sofrendo enquanto se limita, nos vem dar a certeza de que podemos salvar-nos, de que para lá de todos os tormentos a paz se clareai e de que toda a salvação depende do que tivermos feito na vida para apurarmos o que há de mais humano dentro de nós; é um Deus todo de compreensão, de inteligente entendimento das fraquezas e das quedas, sem que, no entanto, ele próprio se mostre fraco perante os hipócritas que impedem o reino, perante os fariseus que sabem a lei e não a cumprem; é um Deus que se compadece perante o sofrimento e oferece como exemplo a sua própria coragem perante o que teve de suportar para que a nossa salvação fosse possível; é, finalmente, um Deus que nos afirma, na enérgica brandura de todas as suas palavras, que podemos construir um céu, não subir a um céu, que poderemos esperar a realização na terra de uma sociedade fraterna e justa, em que talvez todo o sofrimento desapareça, em que talvez, ao fim da imensa jornada dolorosa, a humanidade possa, com serena inteligência, com profunda compreensão, contemplar o espectáculo admirável do mundo; não recuando perante o mal, dá-nos a esperança que haveremos de vencer.
Agostinho da Silva, “Vida de Miguel Ângelo”, Famalicão, Edição do Autor, 1942