domingo, outubro 30, 2011

Dũa austera, apagada e vil tristeza


Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil tristeza.
Luís Vaz de Camões, “Os Lusíadas” – canto X, 145

sexta-feira, outubro 21, 2011

Dolorosas infâmias...


As revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal de que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade.
Decerto que os horrores da revolução são medonhos, decerto que tudo o que é vital nas sociedades, a família, o trabalho, a educação, sofrem dolorosamente com a passagem dessa trovoada humana. Mas as misérias que se sofrem com as opressões, com os maus regimes, com as tiranias, são maiores ainda. (...)
As desgraças das revoluções são dolorosas fatalidades, as desgraças dos maus governos são dolorosas infâmias»
Eça de Queirós, in “Distrito de Évora”, 1867

segunda-feira, outubro 17, 2011

Arte Sacra

O clero português, mesmo aquele que sai dos seminários todo cheio de tomismo e liturgia, em arte é de uma ignorância imensurável. Vá o meu querido doutor por essas igrejas fora. As imagens do Sagrado Coração de Jesus e do Coração de Maria, de Nossa Senhora de Lurdes, do Santo Condestável e da Nossa Senhora de la Salette, duma pulcritude reles, desbancaram as velhas imagens cheias de séculos, góticas tantas vezes. Por outra, como estas parecem feias, sem beleza celestial, entregam-nos ao imaginário, que as desbasta, alinda, ou simplesmente avilta sob a encarnação acatitada. Os templos românicos, que abundam por esta província, foram demolidos para dar lugar à igreja alta, sem graça nem estilo, género telheiro de fábrica. Os padres queimam os velhos paramentos, brocados do Renascimento, chamalotes que são maravilhas de tecelagem, porque estão velhos! Por modos autoriza-os o ritual.
Aquilino Ribeiro, “O Homem Que Matou o Diabo”

segunda-feira, outubro 10, 2011

Filosofei...

Coimbra, 15 de Abril de 1943 – Era preciso dizer-lhe que o fumo lhe fazia mal, lhe aumentava a tosse e o pigarro. Nos livros, pelo menos, vinha assim. Mas filosofei:
- Olhe, a vida, sem uma pitada de risco, não presta. Eu cá sou por um diabo que se esconda no bolso do colete, enrolado numa mortalha, e nos atente para que lhe cheguemos um fósforo ao rabo de vez em quando. Intoxica, mas é um regalo vê-lo depois desfeito em cinza, vencido à custa de um segundo da nossa vida.
Miguel Torga, “Diário II”

quinta-feira, outubro 06, 2011

...e disto nunca se viu castigo!

Senhor, os reis são vassalos de Deus; e se os reis não castigam os seus vassalos, castiga Deus os seus. A causa principal de não se perpetuarem as coroas nas mesmas nações e famílias é a injustiça, ou são as injustiças, como diz a Escritura Sagrada; e entre todas as injustiças, nenhumas clamam tanto ao céu, como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres, e as que não pagam o suor aos que trabalham: e estes são e foram sempre os dois pecados deste Estado, que ainda têm tantos defensores.
A perda do Senhor Rei D. Sebastião em África, e o cativeiro de sessenta anos que se seguiu a todo o reino, notaram os autores daquele tempo que foi castigo dos cativeiros que na costa da mesma África começaram a fazer os nossos primeiros conquistadores, com tão pouca justiça como a que se lê nas mesmas histórias.
As injustiças e tiranias que se têm executado nos naturais desta terra excedem muito às que se fizeram na África. Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram, por esta costa e sertões, mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações como grandes cidades; e disto nunca se viu castigo.
Padre António Vieira, “Carta ao Rei D. Afonso VI” (1655)