domingo, novembro 27, 2011

O tio da América


E aqui te declaro: boa, boa fortuna são os braços rijos e a alma escorreita. A outra, de fazendas e capitais, também conta, não digo que não. Mas para a gente apreciar quanto vale, saber saboreá-la como limão espremido na água quando se tem sede, saber defendê-la dos baldões da sorte, forçoso é que a tenhamos amassado por nossas mãos. Essas que desabam das nuvens, vêm por um tio da América, a lotaria ou a vermelhinha, arrenego delas. O azar as deu, o azar as leva. Sou tão ignorante como tu, mas capacito-me que trazem consigo mandinga, qualquer princípio inflamável e, às duas por três, ardem nas mãos, nos cofres, no que estejam empregadas, para não quedar mais do que cinzas e fumo no ar.
Aquilino Ribeiro, “A Batalha Sem Fim” (1930-1931)

domingo, novembro 20, 2011

Quer a razão queira, quer não...


S. Martinho de Anta, 24 de Setembro de 1940 – Vindima. Um cesto de uvas, ao todo! O míldio, a chuva e a geada reduziram oito pipas a meio almude. Meu Pai fala nisto, e fica branco. Mas estejam os elementos e os micróbios certos do seguinte: é que o velho se vai atirar à tesoura, à poda, à erguida, à cava, à redra, ao enxofre e ao sulfato como se as vinhas tivessem dado vinho para as bodas de Caná. Quando se é lavrador como o meu Pai é, o corpo acaba por cavar, quer a razão queira, quer não.
Miguel Torga, “Diário I”

sexta-feira, novembro 18, 2011

Chás e endireitas

Endireita dos ossos era o ZÉ PINTO, da mesma família do capador. Casou para a Vila da Ponte e ganhava mais segadores para o centeio como endireita dos ossos, que os cunhados todos a ganhar a geira. Como não cobrava dinheiro pelo seu artesanato, tudo fazia de graça e a rir, os clientes gemiam e riam ao mesmo tempo, porque ele contava-lhes umas histórias da imaginação que os pacientes tinham vontade de rir. Só dizia à mulher: Ó Maria traz cá uma trança de linho e uma clara de um ovo... e enquanto localizava a quebradura dos ossos distraía o doente de tal maneira que nem dava pela cura, só dizia um AI.
E de CHÁS sabia ele, que tinha um velho alfarrábio com todas as doenças das mais variadas maleitas e os remédios de CHÁ para todas elas.
Padre Manuel Alves, “Parafita – Foral concedido pelo Rei de Portugal D. Afonso III (31 – Maio – 1298) – Análise Histórica –“

domingo, novembro 13, 2011

Europa vs. América

Considere-se uma chávena de café americano. Em qualquer lado se encontra. Qualquer um pode prepará-la. É barata – e as segundas doses são gratuitas. Dado que, em grande parte, não tem sabor, pode diluir-se à vontade. O que lhe falta em sedução é compensado pelo tamanho. É o método mais democrático já inventado para introduzir cafeína em seres humanos. Agora vejamos uma chávena de espresso italiano. Requer equipamento caro. A relação preço-qualidade é escandalosa, dando a entender indiferença pelo consumidor e ignorância do mercado. A satisfação estética da bebida supera de longe o seu efeito metabólico. Não é uma bebida, é um artefacto.
Tony Judt, “O Século XX Esquecido – lugares e memórias”