domingo, janeiro 29, 2012

Basta!


Os portugueses estão no topo da depressão – mas não têm a eficiência do suicídio ao ritmo nórdico. Nem é com mais meia hora de trabalho por dia que o povo fica com o design finlandês: desenganem-se, escuteirinhos da Alemanha. Portugal é demasiado velho para se tornar um puto neoliberal carregado do pestilento acne do individualismo triunfante. Já nem na América se usa este ambiente de bordel sem luxúria.
Inês Pedrosa, “Ler – Livros & Leitores” n.º 108 Dezembro 2011

domingo, janeiro 22, 2012

Bicho-homem

Decerto o bicho-homem é da omnímoda criação o ser que menos interesse reveste quando colhido em abandono, isto é, esquecido de si e dos outros. O lobo que vai no seu caminho denota uma exuberância de força e elasticidade que fariam a glória de um atleta olímpico; o asno que chouta livremente pelo caminho fora, indolente e devaneador, detendo-se aqui a colher uma febra de erva, suspendendo-se além na vaga consideração de qualquer coisa que lhe luziu a meio do campo, indeciso se deve ir ver ou não, assestando os auto-falantes para o besoiro que atravessou o seu horizonte a zumbir ou roçou por ele na sua passagem de bólide, não são números de alta curiosidade? E que dizer da vaca extraviada do pasto, levada ao acaso, patética e transida do espanto de se ver só, mugindo ao fim do mundo? E a singeleza mofina do carneiro, desgarrado, que dá seis passos e solta o mais lamentoso mé, pára ao buraco duma parede, como se por aquele buraco viesse ter com ele um curral, uma porta, um leito de palhas para se deitar, e subitamente, como se acordasse, dispara o seu mé, mete a galopar, balindo sempre se lhe aparece o zagal ou o cão salvador, a cada mutação lançando por perrice infantil ou necessidade de se ouvir desesperados e insistentes més-més? O cavalo tirado a trote ou à rédea solta, soberbo de porte, correndo desconfiado, nitrindo em par de despique ao vento que lhe enfuna a crina, que de humano lhe leva como símbolo de altivez? Visto em jardim zoológico, o homem é o vivente menos garboso, menos digno, porque tudo nele é estudo e artifício, mais reles de carácter e estupidamente emproado. A menos que seja o estafeta batendo a palmilha do pé; o carregador que vai no seu calvário; o caçador de monte ou caçador de fêmea – é feio, gebo, sem sentido, absurdo dentro das pantalonas, amarrado pela gravata que não tem explicação, erguido no chapéu, e ultra-ridículo debaixo do halo jactancioso de racional.
Aquilino Ribeiro, “Mónica” 

domingo, janeiro 15, 2012

Doiro de água...

Figueira da Foz, 20 de Agosto de 1939 – Não, eu não posso viver à beira-mar. Porque, das duas uma: ou me fico pasmado, parvo, de boca aberta diante deste Doiro de água, ou enlouqueço a sentir bater a minha pulsação angustiosa desta massa imensa. No primeiro caso, sinto-me morrer de imbecilidade; no segundo, estou sempre de mão no pulso a ver quando o coração se cansa.
Miguel Torga, “Diário I”

domingo, janeiro 08, 2012

E assim irão...


Bem de lágrimas. A frase de há séculos recorda-me, por expressiva, o acontecimento de ontem, domingo, ocorrido numa praia para os lados do cabo de Sines. Quando tentava salvar das ondas um rapazinho, foi levada pelo mar uma rapariga de dezoito anos. Como a corrente trazia o cadáver para o Norte, a família, camponeses da região, veio-o seguindo vagarosamente toda a tarde e toda a noite pela costa acima. Chegou hoje aqui, ao meio-dia. Um grupo de mulheres e de homens vestidos de negro e silenciosos. Os olhos, atirados para a distância, ardiam-lhes nas faces cavadas pela dor. Longe, avistava-se o corpo, boiando na vaga. Depois, como a corrente virasse ao Sul, seguiram para baixo, ora parando, ora caminhando, sempre de cara voltada para a água. E assim irão, como bem de lágrimas, até que a morta venha dar à praia.
Manuel da Fonseca, “À Lareira, nos Fundos da Casa onde o Retorta Tem o Café”

quinta-feira, janeiro 05, 2012

Para os estádios do mundo inteiro...

Mão-de-obra

Mohammed Ashraf não vai à escola.
Do romper do dia ao erguer da lua, talha, recorta, perfura, monta e cose as bolas de futebol que saem da aldeia paquistanesa de Umarkot e rolam para os estádios do mundo inteiro.
Mohammed tem onze anos. Executa este trabalho desde os cinco.
Se soubesse ler, e se soubesse ler inglês, compreenderia o que está escrito nas etiquetas que coloca em cada uma das suas obras: “Esta bola não foi fabricada por crianças”.
Eduardo Galeano, “Les Voix du temps”, Lux, Montreal, 2011 – tradução de Júlio Henriques [Le Monde Diplomatique – edição portuguesa n.º 62, Dezembro 2011]