quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Artífices


O tempo em S. Cristóvão anda devagar. As terras são cascalho puro, de maneira que é preciso dar prazo às raízes para roerem o granito até fazerem de uma areia um grão de cevada ou de centeio. Um ano, ali, são trezentos e sessenta e cinco dias bem medidos. E as pessoas que lá moram, afeitas a horas longas, têm uma paciência de relojoeiro, cheia de mil cálculos e de mil ponderações. Exactamente como nas leiras, onde a gente vê semanas a fio o mesmo pé de milho parado, meditativo, enigmático, a aloirar encobertamente a sua espiga, assim nos homens mais pasmados, mais lentos e mais metidos consigo, anda às vezes uma resolução secreta a criar e a amadurecer. E saem obras tão perfeitas destas meditações, tão acabadas na concepção e na forma, que só o dedo da providência, porque aponta do céu, é capaz de lhe evidenciar os defeitos de fabrico. Mas mesmo assim são às vezes precisos anos para que Deus descubra a fenda do cântaro. Tal é a perfeição dos artífices de S. Cristovão!
Miguel Torga, conto “Teia de Aranha” in “Novos Contos da Montanha” (1944)

domingo, fevereiro 19, 2012

Dia do Comerciante

Os industriais e os comerciantes sempre foram muito bons a fazer reverter em seu benefício os nossos sentimentos. Habilmente, dirigem as suas campanhas para os momentos críticos do ano, a cuja mitificação ajudam com entusiasmo. Quem comemorava em Portugal, aqui há dez anos, o 14 de Fevereiro, dito Dia dos namorados ou de São Valentim? Era coisa tão nossa como o kilt dos escoceses ou o boomerang dos indígenas da Austrália. Então, alguém se lembrou que o natural desejo de obsequiar o namorado ou a namorada podia converter-se num negócio chorudo, e toca a convencer-nos de que São Valentim tinha nascido ali em Escalos de Baixo e era, pois, portuguesinho de gema. Entendem o que eu quero dizer, suponho.
Depois é o Dia da Mãe, o Dia do Pai, o dia de tudo e mais alguma coisa que possa ser convertido em notas de banco nas caixas registadoras. E nós, que vivemos alegremente nesta sociedade de consumo, vamos comemorando os diferentes dias, os quais perdem gradualmente o seu significado original para se tornarem apenas em dias de dar prendas. Isto é: o Dia do Pai, o Dia da Mãe, o Dia dos Namorados e tutti quanti transformaram-se em Dias do Comerciante todos eles. E nós a ver! E nós a colaborar!» 
A. M. Pires Cabral “Na Província Neva (Crónicas de Natal)”, 1997

domingo, fevereiro 12, 2012

Sê atrevido!


Sê atrevido — e levanta, nem que seja só em imaginação, a tua própria árvore, nos sítios mais inesperados. E principalmente que ela atravanque tudo, suspenda a lufa-lufa dos negócios, se oponha, escandalosa, aos frenéticos automobilistas e os obrigue a fazer grandes desvios, para não baterem nela e nela acabarem por apodrecer encaixotados, como pobres mortais que são!
Alexandre O'Neill, “Já cá não está quem falou” (Assírio & Alvim, 2008)

domingo, fevereiro 05, 2012

Namoro a preto-e-branco

Vai, Meu Amor
(...)
Eu comprei um chapéu branco
Para namorar de dia,
E o chapéu branco rompeu-se,
E eu namorar não sabia.

Eu comprei um chapéu preto
Para namorar de noite,
O chapéu preto rompeu-se,
E o namorar acabou-se.
Salvador Parente “Cancioneiro Transmontano | I – Cantigas de Roda”, Cadernos Culturais, 2.ª Série, n.º 6, Vila Real, 1989