quarta-feira, setembro 19, 2012

O gosto de ser livre...


Argel, 14 de Setembro de 1953 – As duas bofetadas que um polícia francês acaba de dar na minha frente a um nativo vagabundo hão-de custar caro à França. Até me pareceu ver o céu claro da Argélia abrir-se ligeiramente, e Maomé tomar nota do caso no seu canhenho de represálias.
Este cartesianismo europeu não se convence de que toda a forma de colonialismo é imoral, seja ela a mais progressiva materialmente e a mais codificada socialmente. De que à universal e tentacular presença civilizadora do cristianismo falta sempre um dos lados do diálogo: a opinião do indígena. Que pensa ele do benefício? Que disse o Inca no Peru, o Asteca no México, o Negro em Angola? Que diz o Árabe, aqui? Interessa-lhe mais a penitência da Cruz, ou a volúpia do Crescente? Prefere ver as formas, ou adivinhá-las? Claramente que nunca passou pela cabeça dos apóstolos fazer a pergunta. Armados até aos dentes e senhores duma técnica manual e mental demoníaca, julgam ocioso fazê-la. Mas todo o submetido responde, mais cedo ou mais tarde, mesmo sem ser interrogado. Embora a séculos da agressão, os Incas estão a responder, e os Astecas também, e os Negros também. E não me parece que o mundo islâmico se cale, túrgido como o vejo, com todas as energias represadas nas dobras do albornoz.
Na voz salmodiada dos velhos muezins, que desce dos minaretes e repercute multiplicada e rejuvenescida nas gargantas adolescentes, no silêncio duma casbá onde a alma forasteira penetra como lâmina em bainha sem fundo, no bulício das feiras que a miséria circunda dum halo de comício, o espírito ocidental suspicaz surpreende a orça incoercível duma religião a que já nada de autêntico temos a opor, e o ódio de uma vontade humana que nunca se concebeu esmagada. Mais do que o poder dos engenhos de repressão, do que as seduções dum progresso que atropela as essências, vale a obstinação dum versículo que se estampa nos olhos, depois de ser carícia nos lábios e friso caligráfico nas mesquitas. E mais ainda do que ele, vale a liberdade. O gosto de ser livre diante do próprio deus.
Miguel Torga, “Diário VII”

sexta-feira, setembro 07, 2012

Sobre a tradução


- O que há de poético na obra de Cervantes – observei, como se estivesse a fazer uma conferência – é quase intransmissível noutra língua. Trata-se, de resto, de um fenómeno literário que abrange qualquer género de grande poesia e de determinado tipo de prosa. Não quer dizer que devemos ignorar Kafka por não saber checo, mas há autores que constroem o clima com a própria língua e existe uma grande desvalorização na passagem para outro idioma. Ler James Joyce sem ser na língua original é perder trinta por cento nas entrelinhas. Ler Rimbaud é como perder qualquer coisa como cinquenta por cento.
Dennis McShade, “Requiem para D. Quixote”