domingo, novembro 25, 2012

O português é um íncola degenerado.


«Carece de estrutura. Que é preciso para que o português tenha vida plasticamente sua e a viva com a indispensável autonomia e carácter? Antes de ir mais longe convém examinar porque é que o homem que para aí se vê não esteva à altura de se talhar um habitat próprio, digno de europeu, em território onde a existência, graças ao clima por via de regra benigno, em despeito das qualidades medíocres do solo, poderá ser fácil e fecunda. Se chamarmos a depor a história, a etnografia, a demografia e compulsarmos as estatísticas, chegaremos à conclusão que o português é um íncola em estado de esgotamento. Melhor: é um íncola degenerado. Como ocorreu tal catástrofe?» (...)
«O português é um íncola degenerado. Como ocorreu tal catástrofe? As causas foram várias e fazer a sua etiologia seria tarefa laboriosa e demorada. Assentemos, desde já, nesta facto incontroverso, que não tem anos, mas séculos, e não precisa de demonstração: a maioria dos portugueses tem fome. Não se melindrem os ouvidos de Vossências com o juízo calamitoso e pronunciem acentuando bem as sílabas, que soltam por cima do charco um grito de alarme: a maioria dos portugueses tem fome! O operário urbano não ganha com que se alimentar suficientemente e alimentar a prole, e o mesmo sucede ao cavador, ao pequeno proprietário, se anda em dia com o Estado e o ricouço, e ao mediocrata da classe liberal – quatro grupos estes que representam a maioria da nação. Portanto, primeiro que tudo, há que matar a fome do habitante, regenerando a planta humana raquítica, enfezada, de mau semental e mau fruto. O problema que consiste torná-lo animal civilizado, mercê de sabenças, serviços públicos grátis e tudo o mais que constitui o crisol dos Estados, é secundário. A tudo prima ter de comer à farta e moradia higiénica e saudável. Para isso temos de expropriar os grandes meios de produção, dividir a terra arável para quem seja capaz de granjeá-la pelo seu braço e cultivar manu militari, se tanto for preciso, a terra baldia. Está provado que não há solo bom nem solo mau. Há solo adaptado ou inadaptado à cultura. Por outros termos, a terra em si não conta; o que conta é o húmus, e esse depende exclusivamente da preparação química a que é sujeito. A terra não é mais do que o meio em que estão depositados os princípios de que se nutre a planta, como o mar é fiel comissário, digamos, do plâncton de que se alimenta a fauna marinha.» (...)
«Com resolver o problema da terra, repartindo esta e aproveitando aquela de modo mais eficaz, teremos tocado noutro, não menos fundamental: o problema biológico da raça. A aldeia é a célula do agregado social. Aí se renova e tempera o capital humano. Toda a obra de regeneração tem de começar por ali. Ora a célula lusitana, além de pobre, gasta, enfermiça, é de natureza compósita; compósita de godo, de romano, de berbere, de cafre, que sei eu? Tem o defeito dos híbridos: falta de carácter. O que por aí ficou é o rebotalho. O rebotalho de muitas raças escumadas pela guerra. O invasor chegava e tratava de exterminar: primeiro quem lhe resistia; depois quem o contrariava em sua vontade discricionária e lhe disputava a fêmea. Para que o intruso gozasse da conquista, havia que proceder à eliminação do mais nobre, do mais forte, do mais varonil. Deste modo ninguém lhe contestaria a posse da terra, da casa e da mulher, em geral as três ambições do homem que fazia a guerra. Assim deve ter sucedido com a colonização romana, depois com a invasão dos bárbaros do Norte e não menos com a ocupação árabe. Destas três vagas, não falando de outras mais ou menos ante-históricas, subsistiu o que não teve ânimo para renhir ou emigrar, o débil e o tíbio, numa palavra. A selecção faz-se às avessas: perdurou o reles. Imagine-se agora que espécie de capital humano ficou desta filtragem malfazeja? O saloio que por aí se vê, insusceptível de progresso, inimigo da árvore, preguiçoso, sem ideal, sem beleza, é o exemplo eloquente. Compreende-se que a faixa de terra lusitana, delimitada a todo o longo pelo mar, fosse como o paredão onde vieram esbarrar e quebrar-se as hordas migratórias, inflectindo para a África a parte vigorosa e aventureira, agarrando-se ao chão o contingente de cansados, doentes, combalidos, que devia ser o mais numeroso. Da população autóctone, rarefacta em menos de doze séculos, no sentido do pior, uma três ou quatro vezes cruzada com os dejectos humanos doutras tantas invasões, saiu o português, que teve ainda a infelicidade de ser joeirado do melhor pela aventura dos descobrimentos e das conquistas do século XVI. Não nos iludamos nem tenhamos vergonha de o proclamar, pois os sucessos da nação se sobrepõem à veleidade do indivíduo: somos uma espécie compósita, heteróclita, ainda não decantada no que muitas raças tinham de pior, miuçalha, em suma.» (...)
«É preciso melhorar as condições, quer físicas quer morais, da existência do camponês. O camponês, além do resto, é o reprodutor por excelência. Como pode a raça ter saúde e beleza se estão viciadas as fontes da vida? A aldeia portuguesa é uma pocilga e os moradores chusma heterogénea de loucos, aleijados, enfermos, em decrescimento o quociente dos fortes e bem conformados. Não há localidade, por mais pequena que seja, que não tenha o seu jogral, que o é por direito de mentecapto, os seus estropiados e os seus mendigos. Estes têm a liberdade de cruzar-se a seu bel-prazer. Não é raro que um leproso case com mulher sã; não é menos frequente que um nascituro aleijado, mas o que se chama aleijado por defeito congénito de pai ou mãe, se siga outro nascituro nas mesmas condições, e, quando tudo aconselhava que se parasse a obra nefanda de atirar ao mundo com lázaros, a veia, fecunda posto que corrompida, continue a produzir, e sejam vários os monstros saídos do contubérnio derrancado. Há que instaurar com foros de lei coerciva e reguladora o eugenismo se se quer salvar a raça ou variedade peninsular que se convencionou chamar de lusitana, começando desde já a depurá-la, proibindo os casamentos consanguíneos, os casamentos entre indivíduos com tara ou tendência mórbida, indo até à esterilização. Em paládio dos miseráveis arvorou-se a Igreja desde sempre. É a sua grei por excelência. A miséria humana é-lhe tão sensível como o adubo às rosas. É o primeiro embaraço que se há-de encontrar no caminho da renovação que preconizamos. Além disso tudo, há que formar o cérebro do camponês de modo a que tenha dignidade humana; que se esqueça de que foi escravo; que tenha gosto em viver; que odeia a morte e que a morte lhe não seja refrigério. Tenho nos ouvidos a súplica da aldeã que morava à porta da minha casa paterna. Sempre que havia óbitos na povoação ou arredores, rompia nesta choradeira: Porque não se lembra a morte de mim? Para que o camponês seja gente, temos ainda que libertá-lo das garras do Fisco e da burocracia da vila que é a sua sanguessuga danada e, como o agro português é pobre, dar-lhe aquilo que seria barato, que constituiria a nossa alimentação abundante e sadia se houvesse método, consciência, visão económica: peixe. Os mares que banham as costas portuguesas estão a abarrotar de peixe. Porque não o pescam? Entre muitas razões por incúria, repugnância em explorar o que, tendo embora valor, não acarreta lucros explosivos, espírito de rapacidade de certos indivíduos ou grupos financeiros. Há portanto que a imensa ucharia. À falta de melhor ponha-se a Marinha de Guerra, a nossa briosa Armada, a pescar a sardinha e o carapau de modo a que o faminto do Saojo, do Jarmelo, da Gralheira tire o ventre de misérias.» (...)
«Aqui há tanto de doutrina fisiocrática como das leis de Licurgo ou dos preceitos do Deuteronómio. E não há menos do padre-nosso: o pão de cada dia nos dai hoje... Eu quero a terra explorada cientificamente a bem da comunidade. O português, mutatis mutantis, cultiva a terra como se fazia nos tempos do rei Vamba. Quanto ao mar, que ainda não foi dividido em courelas, belgas, herdades como o solo, e grande deve ter sido a pena do irmão burguês, quero que se torne o manancial da fartura dum povo esfomeado, que seja dalgum modo o que foi para os israelitas o solo pingue da Palestina, que transformou esses vagabundos do deserto, só pele, osso e cobiça, em habitantes sedentários, satisfeitos com a vida, criando arte, constituindo uma personalidade. É muito pedir? Então o oceano não há-de dar mais que duas sardinhas, uma que vai podre para o estrangeiro nas latas de conserva, outra que chega corchada, ardida, ou amarela da salmoira, à aldeia das serras? A seara portuguesa não há-de produzir mais que dez sementes e no pomar só hão-de amadurar pomos bichosos? A minha linguagem indignada, estou na ver, presta-se ao riso, mas nem por isso deixa de me assistir uma inexorável justiça. reformemos, reformemos, reformemos. Reformemos antes de mais nada o português físico, atacando o mal originário. É um triste. Reformemos, depois, o homem colono, ensinando-lhe a cultivar a terra e dando-lha. Reformemos ainda o homem social, ensinando-o a viver. Meteram-no mesma camisa do bicho que nasce dos Pirenéus para lá. Desde a escola tem o calcorrear do francês: o mesmo ensino, os mesmos processos, a mesma norma; depois, os mesmos deveres para com o Estado, o mesmo serviço militar, as mesmas leis de família, os mesmos lugares-comuns obrigacionais para com a sociedade, a pátria, a Igreja. Acaso o cérebro do português requer semelhante decalque? Não, três vezes não. O português, se descermos para o vulgo, é essencialmente mecanista. Não lhe peçam trabalhos de reflexão ou que exijam uma grande retentiva do espírito. Mas prima em tudo o que seja manual e obra de confecção. Como operário é um excelente ensamblador, admirável escultor de talha, pedreiro, operário de manufactura. Em contraposição é avesso a tudo que implique faculdade criadora. A educação do português tem de ser orientada no sentido do seu génio. Quanto ao espiritual de que deva impregnar-se a sua formação em harmonia com a índole, é de recomendar a reserva mais circunspecta. Em verdade, ficou no território a enxurrada de muitas raças, as quais professam religiões diferentes em seu credo e no conceito que tinham do mundo e seus fenómenos. Ficou uma vasa mística, viveiro prodigioso de rãs caoxando ao céu. Que havia a esperar de consciências religiosas mestiças se não inaptitude para o mistério e a contemplação, e daí incapacidade da verdadeira fé? Em algumas províncias e regiões o culto reduz-se a práticas externas em que se sentem enxertias estranhas, tais as províncias do Sul e o hinterland saloio. No Norte, druídico ou perdurantemente panteísta, não se invocam ainda, a par de Santa Bárbara e S. Jerónimo, os santos Deuses Imortais?! As religiões foram sempre um pormenor na vida do português, proselitista por conveniência comercial e política, mas sem entranhado alor da crença e abnegação do espírito. Que obras de idealidade verdadeiramente colectiva oferece a arte da nossa terra? Batalha e Jerónimos são obras do poder real gizadas por estrangeiros. Do povo são as capelinhas pelos montes, simples e ingénuas como larários a Adónis. As catedrais foram edificadas, não raras vezes, com as pedras das mesquitas, para atestar a vitória do cristão, ou erguidas por indústria do prelado ostentoso. Também não se sente na história da nacionalidade e sua projecção no mundo alma construtiva, irradiadora. A religião, sob este aspecto, é o pálio que vem esperar o vizo-rei e a missa que congrega a soldadesca na feitoria ou pagode avassalado. Nada de dentro. Santo António e Santa Isabel rainha são santos de pura exterioridade. S. Gonçalo consagra os antigos mitos fálicos. O português é refractário à adoração no que teve de místico e agora tem de eucarístico. Supor, porque houve o escudo de Cristo nas caravelas, que era visceralmente devoto e que toda a restauração em si, na sua personalidade, tenha de passar pelos Syllabus, errôneo.»
Aquilino Ribeiro, “O Arcanjo Negro”

domingo, novembro 18, 2012

O especialista


O especialista é um homem que tem a opinião dos outros, embora sobre um só assumpto. O especialista é incapaz de iniciativa. Por isso os especialistas são muitos e felizes. [71A-61]
Fernando Pessoa, “Prosa de Álvaro de Campos”

quarta-feira, novembro 14, 2012

Solidaritaet


No seu livro intitulado “Colapso: ascensão e queda das sociedades humanas” (Gradiva, 2008), o biólogo Jared Diamond refere, entre as razões pelas quais as civilizações antigas morreram, a incapacidade das elites e dos governos respetivos para compreenderem o processo de desmoronamento em curso ou, quando tomaram consciência dele, a incapacidade de o evitar, devido a uma atitude de defesa “de curto prazo” dos seus privilégios. Arnold J. Toynbee, ilustre filósofo da História, advertiu: “As civilizações morrem assassinadas, suicidam-se”. Só nos resta desejar que não seja simplesmente a isso que estamos a assistir.
Paul Jorion, Le Monde, 08.10.2012 [Courrier Internacional, n.º 201, Novembro 2012]