«Carece de
estrutura. Que é preciso para que o português tenha vida plasticamente sua e a
viva com a indispensável autonomia e carácter? Antes de ir mais longe convém
examinar porque é que o homem que para aí se vê não esteva à altura de se
talhar um habitat próprio, digno de
europeu, em território onde a existência, graças ao clima por via de regra
benigno, em despeito das qualidades medíocres do solo, poderá ser fácil e
fecunda. Se chamarmos a depor a história, a etnografia, a demografia e
compulsarmos as estatísticas, chegaremos à conclusão que o português é um
íncola em estado de esgotamento. Melhor: é um íncola degenerado. Como ocorreu
tal catástrofe?» (...)
«O português é um
íncola degenerado. Como ocorreu tal catástrofe? As causas foram várias e fazer
a sua etiologia seria tarefa laboriosa e demorada. Assentemos, desde já, nesta
facto incontroverso, que não tem anos, mas séculos, e não precisa de
demonstração: a maioria dos portugueses tem fome. Não se melindrem os ouvidos
de Vossências com o juízo calamitoso e pronunciem acentuando bem as sílabas,
que soltam por cima do charco um grito de alarme: a maioria dos portugueses tem
fome! O operário urbano não ganha com que se alimentar suficientemente e
alimentar a prole, e o mesmo sucede ao cavador, ao pequeno proprietário, se
anda em dia com o Estado e o ricouço, e ao mediocrata da classe liberal –
quatro grupos estes que representam a maioria da nação. Portanto, primeiro que
tudo, há que matar a fome do habitante, regenerando a planta humana raquítica,
enfezada, de mau semental e mau fruto. O problema que consiste torná-lo animal
civilizado, mercê de sabenças, serviços públicos grátis e tudo o mais que
constitui o crisol dos Estados, é secundário. A tudo prima ter de comer à farta
e moradia higiénica e saudável. Para isso temos de expropriar os grandes meios
de produção, dividir a terra arável para quem seja capaz de granjeá-la pelo seu
braço e cultivar manu militari, se
tanto for preciso, a terra baldia. Está provado que não há solo bom nem solo
mau. Há solo adaptado ou inadaptado à cultura. Por outros termos, a terra em si
não conta; o que conta é o húmus, e esse depende exclusivamente da preparação química
a que é sujeito. A terra não é mais do que o meio em que estão depositados os
princípios de que se nutre a planta, como o mar é fiel comissário, digamos, do
plâncton de que se alimenta a fauna marinha.» (...)
«Com resolver o
problema da terra, repartindo esta e aproveitando aquela de modo mais eficaz,
teremos tocado noutro, não menos fundamental: o problema biológico da raça. A
aldeia é a célula do agregado social. Aí se renova e tempera o capital humano.
Toda a obra de regeneração tem de começar por ali. Ora a célula lusitana, além
de pobre, gasta, enfermiça, é de natureza compósita; compósita de godo, de
romano, de berbere, de cafre, que sei eu? Tem o defeito dos híbridos: falta de
carácter. O que por aí ficou é o rebotalho. O rebotalho de muitas raças
escumadas pela guerra. O invasor chegava e tratava de exterminar: primeiro quem
lhe resistia; depois quem o contrariava em sua vontade discricionária e lhe
disputava a fêmea. Para que o intruso gozasse da conquista, havia que proceder
à eliminação do mais nobre, do mais forte, do mais varonil. Deste modo ninguém
lhe contestaria a posse da terra, da casa e da mulher, em geral as três
ambições do homem que fazia a guerra. Assim deve ter sucedido com a colonização
romana, depois com a invasão dos bárbaros do Norte e não menos com a ocupação
árabe. Destas três vagas, não falando de outras mais ou menos ante-históricas,
subsistiu o que não teve ânimo para renhir ou emigrar, o débil e o tíbio, numa
palavra. A selecção faz-se às avessas: perdurou o reles. Imagine-se agora que
espécie de capital humano ficou desta filtragem malfazeja? O saloio que por aí
se vê, insusceptível de progresso, inimigo da árvore, preguiçoso, sem ideal,
sem beleza, é o exemplo eloquente. Compreende-se que a faixa de terra lusitana,
delimitada a todo o longo pelo mar, fosse como o paredão onde vieram esbarrar e
quebrar-se as hordas migratórias, inflectindo para a África a parte vigorosa e
aventureira, agarrando-se ao chão o contingente de cansados, doentes,
combalidos, que devia ser o mais numeroso. Da população autóctone, rarefacta em
menos de doze séculos, no sentido do pior, uma três ou quatro vezes cruzada com
os dejectos humanos doutras tantas invasões, saiu o português, que teve ainda a
infelicidade de ser joeirado do melhor pela aventura dos descobrimentos e das
conquistas do século XVI. Não nos iludamos nem tenhamos vergonha de o
proclamar, pois os sucessos da nação se sobrepõem à veleidade do indivíduo:
somos uma espécie compósita, heteróclita, ainda não decantada no que muitas raças
tinham de pior, miuçalha, em suma.» (...)
«É preciso melhorar
as condições, quer físicas quer morais, da existência do camponês. O camponês,
além do resto, é o reprodutor por excelência. Como pode a raça ter saúde e
beleza se estão viciadas as fontes da vida? A aldeia portuguesa é uma pocilga e
os moradores chusma heterogénea de loucos, aleijados, enfermos, em
decrescimento o quociente dos fortes e bem conformados. Não há localidade, por
mais pequena que seja, que não tenha o seu jogral, que o é por direito de
mentecapto, os seus estropiados e os seus mendigos. Estes têm a liberdade de
cruzar-se a seu bel-prazer. Não é raro que um leproso case com mulher sã; não é
menos frequente que um nascituro aleijado, mas o que se chama aleijado por
defeito congénito de pai ou mãe, se siga outro nascituro nas mesmas condições,
e, quando tudo aconselhava que se parasse a obra nefanda de atirar ao mundo com
lázaros, a veia, fecunda posto que corrompida, continue a produzir, e sejam
vários os monstros saídos do contubérnio derrancado. Há que instaurar com foros
de lei coerciva e reguladora o eugenismo se se quer salvar a raça ou variedade
peninsular que se convencionou chamar de lusitana, começando desde já a depurá-la,
proibindo os casamentos consanguíneos, os casamentos entre indivíduos com tara
ou tendência mórbida, indo até à esterilização. Em paládio dos miseráveis
arvorou-se a Igreja desde sempre. É a sua grei por excelência. A miséria humana
é-lhe tão sensível como o adubo às rosas. É o primeiro embaraço que se há-de
encontrar no caminho da renovação que preconizamos. Além disso tudo, há que
formar o cérebro do camponês de modo a que tenha dignidade humana; que se
esqueça de que foi escravo; que tenha gosto em viver; que odeia a morte e que a
morte lhe não seja refrigério. Tenho nos ouvidos a súplica da aldeã que morava
à porta da minha casa paterna. Sempre que havia óbitos na povoação ou
arredores, rompia nesta choradeira: Porque
não se lembra a morte de mim? Para que o camponês seja gente, temos ainda
que libertá-lo das garras do Fisco e da burocracia da vila que é a sua
sanguessuga danada e, como o agro português é pobre, dar-lhe aquilo que seria
barato, que constituiria a nossa alimentação abundante e sadia se houvesse
método, consciência, visão económica: peixe. Os mares que banham as costas
portuguesas estão a abarrotar de peixe. Porque não o pescam? Entre muitas
razões por incúria, repugnância em explorar o que, tendo embora valor, não
acarreta lucros explosivos, espírito de rapacidade de certos indivíduos ou grupos
financeiros. Há portanto que a imensa ucharia. À falta de melhor ponha-se a
Marinha de Guerra, a nossa briosa Armada, a pescar a sardinha e o carapau de
modo a que o faminto do Saojo, do Jarmelo, da Gralheira tire o ventre de
misérias.» (...)
«Aqui há tanto de
doutrina fisiocrática como das leis de Licurgo ou dos preceitos do
Deuteronómio. E não há menos do padre-nosso: o pão de cada dia nos dai hoje... Eu quero a terra explorada
cientificamente a bem da comunidade. O português, mutatis mutantis, cultiva a terra como se fazia nos tempos do rei
Vamba. Quanto ao mar, que ainda não foi dividido em courelas, belgas, herdades
como o solo, e grande deve ter sido a pena do irmão burguês, quero que se torne
o manancial da fartura dum povo esfomeado, que seja dalgum modo o que foi para
os israelitas o solo pingue da Palestina, que transformou esses vagabundos do
deserto, só pele, osso e cobiça, em habitantes sedentários, satisfeitos com a
vida, criando arte, constituindo uma personalidade. É muito pedir? Então o oceano
não há-de dar mais que duas sardinhas, uma que vai podre para o estrangeiro nas
latas de conserva, outra que chega corchada, ardida, ou amarela da salmoira, à
aldeia das serras? A seara portuguesa não há-de produzir mais que dez sementes
e no pomar só hão-de amadurar pomos bichosos? A minha linguagem indignada,
estou na ver, presta-se ao riso, mas nem por isso deixa de me assistir uma
inexorável justiça. reformemos, reformemos, reformemos. Reformemos antes de
mais nada o português físico, atacando o mal originário. É um triste.
Reformemos, depois, o homem colono, ensinando-lhe a cultivar a terra e
dando-lha. Reformemos ainda o homem social, ensinando-o a viver. Meteram-no
mesma camisa do bicho que nasce dos Pirenéus para lá. Desde a escola tem o calcorrear
do francês: o mesmo ensino, os mesmos processos, a mesma norma; depois, os
mesmos deveres para com o Estado, o mesmo serviço militar, as mesmas leis de
família, os mesmos lugares-comuns obrigacionais para com a sociedade, a pátria,
a Igreja. Acaso o cérebro do português requer semelhante decalque? Não, três
vezes não. O português, se descermos para o vulgo, é essencialmente mecanista.
Não lhe peçam trabalhos de reflexão ou que exijam uma grande retentiva do
espírito. Mas prima em tudo o que seja manual e obra de confecção. Como
operário é um excelente ensamblador, admirável escultor de talha, pedreiro,
operário de manufactura. Em contraposição é avesso a tudo que implique
faculdade criadora. A educação do português tem de ser orientada no sentido do
seu génio. Quanto ao espiritual de que deva impregnar-se a sua formação em
harmonia com a índole, é de recomendar a reserva mais circunspecta. Em verdade,
ficou no território a enxurrada de muitas raças, as quais professam religiões
diferentes em seu credo e no conceito que tinham do mundo e seus fenómenos.
Ficou uma vasa mística, viveiro prodigioso de rãs caoxando ao céu. Que havia a
esperar de consciências religiosas mestiças se não inaptitude para o mistério e
a contemplação, e daí incapacidade da verdadeira fé? Em algumas províncias e
regiões o culto reduz-se a práticas externas em que se sentem enxertias
estranhas, tais as províncias do Sul e o hinterland
saloio. No Norte, druídico ou perdurantemente panteísta, não se invocam ainda,
a par de Santa Bárbara e S. Jerónimo, os santos Deuses Imortais?! As religiões
foram sempre um pormenor na vida do português, proselitista por conveniência
comercial e política, mas sem entranhado alor da crença e abnegação do
espírito. Que obras de idealidade verdadeiramente colectiva oferece a arte da
nossa terra? Batalha e Jerónimos são obras do poder real gizadas por
estrangeiros. Do povo são as capelinhas pelos montes, simples e ingénuas como
larários a Adónis. As catedrais foram edificadas, não raras vezes, com as
pedras das mesquitas, para atestar a vitória do cristão, ou erguidas por
indústria do prelado ostentoso. Também não se sente na história da
nacionalidade e sua projecção no mundo alma construtiva, irradiadora. A
religião, sob este aspecto, é o pálio que vem esperar o vizo-rei e a missa que
congrega a soldadesca na feitoria ou pagode avassalado. Nada de dentro. Santo
António e Santa Isabel rainha são santos de pura exterioridade. S. Gonçalo
consagra os antigos mitos fálicos. O português é refractário à adoração no que
teve de místico e agora tem de eucarístico. Supor, porque houve o escudo de
Cristo nas caravelas, que era visceralmente devoto e que toda a restauração em
si, na sua personalidade, tenha de passar pelos Syllabus, errôneo.»
Aquilino Ribeiro, “O
Arcanjo Negro”