quarta-feira, dezembro 09, 2009

Chuva como um Niágara!


A chuva não caia em gotas distintas, mas em fios de água de grossura variável. Era algumas vezes como uma massa compacta, um lençol de água, uma catarata, um Niágara. Imagine-se um grande tanque aéreo que contivesse um mar e se virasse por súbito movimento. Pela acção de tais derramamentos formam-se as barrocas, as planícies transformam-se em lagos, os ribeiros em torrentes, e os rios inundam vastíssimos territórios. É o contrário que acontece em zonas temperadas, onde a violência das trovoadas está na razão inversa da sua duração. Na África, por muito fortes que sejam, duram muitos dias. Como se pode acumular tanta electricidade nas nuvens? Como se podem juntar tantas massas de vapor? É difícil compreender. Mas é assim, e a vista de tais fenómenos transportam-nos às épocas extraordinárias do período diluviano.
Júlio Verne, “Um Herói de Quinze Anos”

terça-feira, dezembro 08, 2009

Arte


Porque arte, para mim, não significa epigonismo de passatempo, capricho pessoal, galenteio de enfeites, teima na beleza consabida para pessoas bem-educadas ou prenda académica; mas esta ânsia de sexo das estrelas que mergulha nas raízes da vida e da morte – e só os artistas, em determinados cruzamentos sociais e psicológicos, logram trazer para a consciência dos homens. (Ai! sempre apenas de meia dúzia de homens!).
José Gomes Ferreira, “Imitação dos Dias”

segunda-feira, dezembro 07, 2009

Rebeldias


Com razão se tem chamado a atenção para a indócil rebeldia deste órgão, que se subleva inoportunamente ainda, quando dele não precisamos e se acalma, mais inoportunamente ainda, quando temos necessidade do contrário. Tão imperiosamente se impõe à nossa vontade que repele, com indomável altivez e obstinação, tanto às nossas solicitações mentais como as manuais. E apesar de ser censurado e condenado pela sua rebelião, se eu estivesse encarregado de defender o seu procedimento, talvez fizesse cúmplice os outros membros, seus companheiros, de terem escarnecido dele, por pura inveja da importância e doçura das suas funções; de terem todos juntos conspirado contra ele e de o fazerem carregar com a responsabilidade de uma culpa comum. E, se não, considerai se haverá sequer alguma parte do nosso corpo que não se oponha, com frequência mais que sobrada, à determinação da nossa vontade.
Montaigne, “Ensaios”

domingo, dezembro 06, 2009

Voz do Princípio das Coisas


Voz do Princípio das Coisas: «E o Senhor disse à Terra: “Cala-te que tudo criarás e tudo comerás!”
José Gomes Ferreira, “Gaveta de Nuvens”

sexta-feira, dezembro 04, 2009

Pensar


O acto de pensar imputava-lhe agora mais do que os duvidosos produtos do pensamento em si. Examinava-se a pensar, tal como se contasse, com o dedo sobre o pulso, as pulsações da matéria radial, ou, sob as costelas, o vaivém da respiração. Toda a vida se espantara com essa faculdade que as ideias têm de se aglomerarem friamente como cristais, formando estranhas figuras vãs; ou cresceram como tumores devorando a carne que os concebeu; ou a assumirem monstruosamente certos contornos da pessoa humana, à maneira dessas massas inertes que algumas mulheres dão à luz e que, em suma, não são mais do que um sonho de matéria. Uma boa parte dos produtos do espírito não passavam também de disformes sombras lunares. Outras noções, mais claras e nítidas, como que fabricadas por um mestre artesão, eram, porém, como aqueles objectos que, à distância, iludem; imensamente admiráveis eram os seus ângulos e arestas; e todavia não passavam de grades aonde o entendimento a si mesmo se aprisiona, abstractas ferragens que a ferrugem da falsidade não tardaria a carcomir.
Marguerite Yourcenar, “A Obra Ao Negro”

quinta-feira, dezembro 03, 2009

Um dia o petróleo...


Entretanto, a natureza, tão pródiga de ordinário, não soterrou as preciosas florestas para um consumo que deveria compreender alguns milhares de anos. Um dia a hulha há-de faltar – é caso averiguado. Se algum novo combustível não vier substituir o carvão, as máquinas do mundo inteiro hão-de fatalmente ver-se expostas a uma forçada paralisação. Dentro de um período mais ou menos remoto, desaparecerão os jazigos carboníferos, restando apenas aqueles que na Gronelândia e nas proximidades do mar de Baffin existem debaixo de uma camada de gelo, cuja exploração é quase absolutamente impraticável. Eis a sorte que não se pode evitar.
Júlio Verne, “As Índias Negras”

quarta-feira, dezembro 02, 2009

Dito incomum


Mesmo que suponhas dizer verdades intensamente originais, engenhosas e inéditas (o que nunca sucede), escreve-as sempre como se fossem lugares-comuns.
Deixa aos outros o mau gosto de repetir qualquer insignificância com o ar de quem extrai ouro de minas raras.
José Gomes Ferreira, “Gaveta de Nuvens”

terça-feira, dezembro 01, 2009

Meio cheio meio vazio


É este o problema com a bebida, pensei, enquanto me servia dum copo. Se acontece algo de mau, bebe-se para esquecer; se acontece algo de bom, bebe-se para celebrar; e se nada acontece, bebe-se para que aconteça qualquer coisa.
Charles Burowsky, “Mulheres”

segunda-feira, novembro 30, 2009

Gravidez precoce...


Se eu soubesse que estava a fazer um filho, bem que não o tinha feito, eu estava a satisfazer-me com um corpo que em mim se satisfazia e isso me dava prazer que prazer eu estava dando, aconteceu um filho, que lhe havia de fazer, se houvesse a consciência de que se está a fazer um filho, tanto eles como elas fugiam da cama a sete pés e não seria tão cedo que cairiam noutra.
Manuel Mengo, “O Que Restou da Sereia”

domingo, novembro 29, 2009

Três bichos de tempo


São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz. Porque a noite as usas fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventora de sombras. A manhã essa, é um caracol, em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do meio-dia.
Mia Couto, “O Fio das Missangas”

sábado, novembro 28, 2009

Os Criadores do Mundo


Ando irado contra os homens por vê-los esquecidos de que eles, e só eles, foram os criadores do mundo (sim , OS CRIADORES DO MUNDO) que arrancaram, linha por linha, conhecimento por conhecimento, morte por morte, deste caos de sombras, bichos, peixes e monstros vegetais. Mas hoje preferem dar-lhe o significado divino – que tanto convém aos poderosos – para concluírem que é impossível transformá-lo. Criaram-no, peça por peça, sonho por sonho, no decorrer de biliões e biliões de séculos e, agora, por sequência cómoda de terem herdado a injustiça, não ousam tocar-lhe. Mudar, só os automóveis, os aviões e os aparelhos de rádio. O resto é preciso que continue intacto até o abismo dos abismos sujos. Covardes!
José Gomes Ferreira, “Imitação dos Dias”

sexta-feira, novembro 27, 2009

Liberdade


Rupi jam vincula, dicas:
Num luctata canis nodum arripit, attamen illi,
Quum fugit, a collo trabitur pars longa catenae.
Quebrei os meus laços, dir-me-eis. Por acaso o cão que, após longos esforços, logra por fim escapar, não leva quase sempre consigo um pedaço da sua corrente? Pérsio, Sat, V, 158.

quinta-feira, novembro 26, 2009

Palavras para quê...


A jornalista Susana Torrão enviou a uma série de editoras um exemplar de “Até Ao Fim”, romance magnífico, e premiado, de Vergílio Ferreira. Mudou-lhe apenas o título (“Vigília”, um título bastante virgiliano), os nomes das personagens e o nome do autor. Apresentou o livro como obra de estreia de uma hipotética escritora Isabel de Sousa – e foi unanimemente recusado pelas editoras.

quarta-feira, novembro 25, 2009

Syngué sabour...


Na mitologia persa, chama-se “syngué sabour” a uma pedra mágica, a “pedra-de-paciência”, diante da qual as pessoas confessam as suas infelicidades e sofrimentos, até ao dia em que ela se desfaz, levando consigo a tristeza acumulada.

terça-feira, novembro 24, 2009

Hiper-realistas!


Até parecia um daqueles escritores hiper-realistas americanos que transformaram a javardice etílica e a caralhada fácil em expoentes máximos da literatura contemporânea.
José Xavier Ezequiel, “Fados & Desgarradas”

sexta-feira, novembro 20, 2009

Sempre, o primeiro dia do resto da nossa vida!


Omnem crede diem tibi diluxisse supremum:
Grata superveniet, quae non sperabitur, hora.
Imagina que cada dia é o último que para ti se ilumina, e agradecerás o amanhecer que já não esperavas. Horácio, Epist, I, 4, 13.

quinta-feira, novembro 19, 2009

O riso dos anjos!


Porque a vida de um homem neste mundo é uma coisa muito engraçada. Fala-se de anjos que choram; mas eu creio que, muitas vezes, hão-de acotovelar-se e rir a bom rir do que vêem cá por baixo.
Robert Louis Stevenson, “Catriona”

quarta-feira, novembro 18, 2009

Escola... ao longo dos tempos!


Zombava Dionísio dos gramáticos que cuidam de informar-se dos males de Ulisses e ignoram os seus próprios; dos músicos que afinam as suas flautas e não fazem o mesmo com os seus costumes; dos oradores que pregam a justiça e não a praticam. Se a nossa alma não segue melhor caminha; se não logramos dispor de um juízo mais são, mais estimaria que o meu escolar tivesse passado o tempo a jogar à bola; pelo menos, deste modo teria o corpo mais ágil. Vede-o ao voltar dos seus estudos, depois de ter empregado neles quinze ou dezasseis anos; acha-se incapaz e inábil para o exercício de qualquer profissão ou trabalho; a única coisa que se pode notar nele é que o latim e o grego, que aprendeu, o tornaram mais néscio e presunçoso do que era, ao abandonar a casa dos pais. Devendo possuir uma alma cheia, trá-la inchada; em vez de fortificá-la, contentou-se em inflá-la.
Montaigne, “Ensaios”

terça-feira, novembro 17, 2009

Mulheres... segundo Burowsky!


Elas tinham uma vantagem sobre nós: planeavam muito melhor a sua vida, eram muito mais organizadas. Enquanto os homens viam os jogos de futebol, bebiam uma cerveja ou jogavam Bowling, elas, as mulheres, pensavam em nós, concentravam-se, perscrutavam, decidiam – aceitar-nos, rejeitar-nos, mudar-nos, matar-nos ou simplesmente viverem connosco. No fim de contas, isto tinha pouca importância; não interessava o que elas faziam, nós acabávamos na solidão e na loucura.
Charles Burowsky, “Mulheres”

domingo, novembro 15, 2009

Sobre civilizações


E quando, no fim de contas, estiverem civilizadas as tribos de África, seriam elas por isso mais felizes? E quem sabe se a verdadeira civilização seria a da África e não a da Europa?
Júlio Verne, “Cinco Semanas Em Balão”

sábado, novembro 14, 2009

Amor


Chi puó dir com’égli arde, è in picciol fuoco | Não é muito grande o amor que pode exprimir-se. Petrarca, último verso do soneto 137 (tradução livre).

sexta-feira, novembro 13, 2009

Simplicidades


As pessoas que apenas retêm uma impressão das coisas a qual costuma ser quase sempre boa (pois parece existir uma qualquer virtude na simplicidade) são as que mantêm o equilíbrio no meio da corrente.
Virginia Wolf, “As Ondas”

quinta-feira, novembro 12, 2009

Escandaloso(a)


Ser escandaloso é um estatuto que se adquire ao ser lealmente o que nos apetece, ou estamos predispostos a ser e os outros censuram-nos por sermos aquilo que ardentemente eles queriam ser, mas não têm um mínimo de coragem, ou inconsciência, para arriscar e ser.
Manuel Mengo, “O Que Restou da Sereia”

quarta-feira, novembro 11, 2009

De que vale...


De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonho?
(Versos do menino que fazia versos)
Mia Couto, “O Fio das Missangas”

terça-feira, novembro 10, 2009

Presságios...


Cur banc tibi, rector Olympi,
Sollicitis visum mortabilus addere curam,
Noscant venturas ut dira per omina clades?
...
Sit subitum, quodcumque paras; sit saeca futuri
Mens hominium fati; liceat sperare timenti.
Porquê, soberano senhor dos deuses, juntaste às desditas dos humanos esta triste inquietação? Porquê fazer-lhes conhecer, mediante horrorosos presságios, os seus desastres futuros? Faz com que os nossos males nos colham de improviso, com que o porvir seja desconhecido para o homem, e com que este possa pelo menos esperar sem tremer! Lucano, II, 4, 14.

domingo, novembro 08, 2009

Capitalismo


A crematística é, segundo Aristóteles, a prática do comércio lucrativo, que acaba por esquecer o seu objectivo: a troca de bens pelo facto de serem úteis.

quinta-feira, novembro 05, 2009

De José Gomes Ferreira a José Saramago


Richard Dawkins: Há muitos anos que defende vigorosamente a irracionalidade da crença em Deus e o mal que esta crença inflige na sociedade

quarta-feira, novembro 04, 2009

Turismo


Em meu entender, esta intricadíssima arte de viajar pode resumir-se em dois estilos essenciais: o turístico, inerente a uma multidão de monstros de olhos muito abertos que olham, olham, OLHAM, com entusiasmo de rebanho esbaforido, para a superfície do brilho das coisas (o ideal seria cortar-lhes as pálpebras!), e o aristocrático – em que os homens dão ao mundo a honra de se deslocarem, para continuarem no empenho de desconhecê-lo. Uns buscam, passivos, o que lhes mostram. Os outros trazem em si o que depois fingem encontrar. Tudo isto, claro, desenrolado numa atmosfera de inutilidade magnífica de ilusões não preenchidas.
Mas o que mais divido os dois géneros – para além da resignada aceitação feliz do snobismo da «obra-prima» e do êxtase diante do «famoso» – é, sem dúvida, a idolatria pelas coisas, característica principal dos turísticos. A estes, presumo eu, até as próprias pessoas só interessam quando adquirem o aspecto e a indiferença de objectos, ou os usam para lhes enfeitarem a fome de quererem ser gente: barretes, peninhas, toucas, fitas, capuzes, tamancos... Bonecos de trapo e osso, em suma.
José Gomes Ferreira, “O Irreal Quotidiano”

terça-feira, novembro 03, 2009

HOLOGRAMA


Na rua, mesmo rente a uma casa, havia um papelinho rasgado de um livro a que ninguém prestava atenção. Ora, durante a noite, começou a ganhar raízes e a crescer com a frescura e cor de uma papoila em cujas pétalas se podia ler, mas ninguém lia: poemas. Ao outro dia o empregado da Câmara ía varrer aquilo para o lixo. Uma criança, porém, antecipou-se e levou a flor consigo. Ao chegar à Escola, reparou que tinha um livro na mão!
António Cabral, “Ouve-se Um Rumor”

domingo, novembro 01, 2009

sábado, outubro 31, 2009

Sonoridades...


O italiano na boca dos italianos é uma corrente profunda e sonora com inesperadas cataratas de seixos para a preservarem da monotonia.
Edward Morgan Forster, “Um Quadro Com Vista”

quinta-feira, outubro 29, 2009

Quadro


Quando há verdadeiro amor, torna-se uma certeza, ao ponto de não ver mais, como não se vê um quadro dependurado na parede há 20 anos. Mas se desaparece-se, dava-se logo por isso.
Mircea Castarescu

quarta-feira, outubro 28, 2009

O génio de escritores


Há um problema com os escritores. Se o que ele escreve se vende bastante, muitos exemplares, ele pensa que é um génio. Se o que ele escreve se vende medianamente, ele diz-se genial. Se o que ele escreve é publicado mas vende mal, ele diz-se genial. Se o que ele escreve não é publicado e não tem dinheiro suficiente para publicar ele próprio, então diz que é mesmo genial.
Charles Burowsky, “Mulheres”

terça-feira, outubro 27, 2009

Lágrimas de Deus


Não chores, Kondrat; não irrites Deus, meu filhinho. Já são muito os pobres da terra que choram todos os dias e queixam-se a Deus de suas misérias e dos ricos que se apoderam de tudo. Mas Deus não pediu aos pobres que sofram. Um dia talvez ele ainda se aborrecerá com esse chôro ininterrupto dos pobres e dos famintos. E irritado, juntará todas as lágrimas para convertê-las numa névoa impenetrável que lançará sobre o mar afim de lhes esconder o céu. Então os barcos navegarão sem rumo e se chocarão a uma pedra má que existe no fundo do mar, e irão para o fundo. Poderá também aproveitar as lágrimas para fazer orvalho que numa noite cairá sobre todos os trigais da terra, sobre os nossos e os dos países longínquos... As lágrimas amargas queimarão as espigas que começam a brotar, e a fome e a peste assolarão o mundo... Como nós, os pobres não devem chorar porque as lágrimas atraem a desgraça... Compreendeste, filhinho?
Mikhail Cholokov, “Terra e Sangue”

domingo, outubro 25, 2009


As vacas europeias são mais bem tratadas do que os agricultores africanos. Os bovinos recebem dos dólares [1,52 euros] de subsídios por dia, o que é superior ao rendimento médio de metade dos habitantes do planeta, lembrou o prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz, entrevistado por L’Espresso

quinta-feira, outubro 22, 2009

Direitos Humanos


Não estou de acordo com o que está a dizer, mas lutarei até à morte para que tenha o direito de o dizer.
Voltaire

quarta-feira, outubro 21, 2009

Guineensemente


É tão especial o clima da Guiné, tão difíceis os seus territórios de demarcarem-se, tão aguerridos os seus povos e tão pouco a auctoridade portugueza entre elles se mostra
Maria Luísa Esteves, “A Questão de Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné”

terça-feira, outubro 20, 2009

Pena de escrever


Aquela manta e aqueles farrapos pendurados num prego fediam a bedum, a leite e a sangue. Estes sapatos de boca aberta, aos pés da cama, acabavam de mexer-se com o bafo de um boi estendido na erva e, no sebo com que o sapateiro os engraxava, grunhia um porco sangrado até à última gota. Por toda a parte havia morte violenta, tal como um matadouro ou num recinto patibular. Um pato degolado grasnava na pena que iria servir para traçar em velhos pergaminhos ideias julgadas dignas de perdurar para sempre.
Marguerite Yourcenar, “A Obra Ao Negro”

segunda-feira, outubro 19, 2009

A morte é cega!


como saberão os cegos da morte? se não vêem desaparecer as paredes da casa, os retratos dos amigos, os vasos da erva-da-fortuna, de anémonas e de margaridas, na varanda, pelo semicerrado das portadas? em que outro escuro se tornará a sua escuridão? talvez só ouçam a distância a formar-se absoluta nos sons que desaparecem.

Rui Nunes, “Grito”

domingo, outubro 18, 2009

Aura de amor



Creio que se forma, em torno daqueles que se amam verdadeiramente, uma espécie de aura, de maneira que, mesmo que não se olhem, não se falem, nem se toquem, denunciam os elos que os ligam.


George Simenon, “Maigret e o Caso Nahour”

sexta-feira, outubro 16, 2009

O livro da vida


Há pouco tempo ouvi a escritora argentina Graciela Cabol falar em público, em Gigon, numa intervenção divertidíssima e memorável. Acabou por dizer (...) que um leitor tem uma vida mais longa do que as outras pessoas, porque não morre até acabar o livro que está a ler. O seu próprio pai, explicava Graciela, tinha levado imenso tempo a falecer, porque vinha o médico visitá-lo e abanava tristemente a cabeça, garantia: “Não passa desta noite”, mas o pai respondia: “Não, nem pense, não se preocupe, não posso morrer porque tenho de acabar ‘O Outono do Patriarca’” E assim que o médico ía embora, o pai dizia: “Tragam-me um livro mais grosso”.

Rosa Montero

quinta-feira, outubro 15, 2009