sexta-feira, dezembro 26, 2014

meninos-língua, Brasil

Desde o Descobrimento, Portugal mandava uma legião de órfãos para o Brasil, garantindo-lhes a alimentação; em troca, eram mediadores junto de crianças nativas, «aprendiam a língua indígena e serviam de intérpretes para os jesuítas e oficiais da coroa». Chamavam-lhes meninos-língua.
Clarisse Fukelman, Colóquio Letras, número 180, Maio / Agosto 2012

quarta-feira, dezembro 10, 2014

Liberdade essencial

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Somos livres porque Deus nos abandonou, e há que viver e construir as nossas vidas a partir dessa liberdade essencial.
António Ramos Rosa, “Prosas Seguidas de Diálogos”

domingo, dezembro 07, 2014

Cresci a beijar livros e pão



Cresci a beijar livros e pão.
Lá em casa, sempre que alguém derrubava um livro, ou deixava cair um chapati ou uma «fatia», a palavra que usávamos para um triângulo de pão fermentado com manteiga, o objecto caído tinha não só de ser apanhado mas também beijado, num mea culpa pelo desastre e me sinal de respeito. Eu era tão descuidado e mãos-de-manteiga como qualquer criança e, portanto, nos meus anos de infância, beijei grande número de fatias e tive também a minha conta de livros.
Nos lares devotos da Índia, as pessoas tinham por hábito – e ainda têm – beijar os livros sagrados. Mas nós beijávamos tudo. Beijávamos dicionários e atlas. Beijávamos livros da Enid Blyton e banda-desenhada do Super-Homem. Se algum dia tivesse deixado cair a lista telefónica, provavelmente também a teria beijado.
Tudo isto aconteceu antes mesmo de ter beijado uma rapariga. Aliás, até seria quase verdade, ou em todo o caso suficientemente verdadeiro para um escritor de ficção, dizer que, mal comecei a beijar raparigas, as minhas actividades relativas a pão e livros perderam alguma da excitação que lhes era própria. Mas uma pessoa nunca esquece os seus primeiros amores.
Salman Rushdie, “Mas Já Nada É Sagrado?”, Granta Portugal n.º 2

terça-feira, dezembro 02, 2014

Ver a morte de olhos abertos



Deixei-me guiar pelo meu instinto criativo. Quis entrar pela morte dentro de olhos bem abertos, ver tudo. Vivi qualquer coisa semelhante quando estive na Guerra Colonial. Um dia fomos acudir a uma emboscada e sabíamos que era habitual haver outra emboscada para a coluna de socorro. Demorámos mais de uma hora a lá chegar e pelo caminho iniciei uma contagem decrescente interior para a morte. Pensava: a minha emboscada pode chegar na próxima curva, no outeiro seguinte, ao fundo da estrada. E questionava-me como é que iria morrer. Foi um exercício penoso. Lembro-me de ter concluído que podia morrer mas que não queria que os tiros me acertassem nos olhos. Queria ver a morte de olhos abertos. A emboscada não aconteceu mas a vontade continua.
João de Melo, em entrevista a Luís Ricardo Duarte, JL n.º 1150

quinta-feira, agosto 21, 2014

Catolicismo vermelho

Quanto a mim, odeio e com belo ódios esses povos acalvinados. Lutero é a sombra desse século. O catolicismo era vermelho; o protestantismo é pior por ser incolor, é neutro e anda na História vestido de droguete cinzento como uma farroupilha. Suprimiu os vitrais das igrejas, não é preciso dizer mais nada, e subiu até ao queixo a blusa das mulheres; isto aboliu os seios das santas e tudo o que punha flores nos olhos... Os vitrais flamejantes das rainhas com veste de pedrarias, e da nudez dos arcanjos, era um pouco de céu vivo nas ogivas. O colo nu das mulheres a sair para fora das blusas era um pouco de amor, e portanto um pouco mais de paraíso na parda monotonia dos dias.
Jean Lorrain, “O Senhor de Bougrelon” 

quarta-feira, agosto 13, 2014

Quero crer...


Todos pensávamos até há pouco tempo que o progresso técnico e o avanço da ciência podiam resolver todos os problemas, podiam ajudar a produção agrícola, iam melhorar a sua potencialidade proteica e vitamínica, contribuindo de forma decisiva para resolver o flagelo da fome no mundo. A miséria e os gritantes desníveis sociais poderiam ser minorados pela inovação tecnológica, pela ciência produzida nos nossos laboratórios, pela agricultura moderna. E, infelizmente, tudo está a acontecer precisamente ao contrário.
A quantidade de produtos tem de facto aumentado, pelo menos aparentemente, mas a qualidade tem vindo a diminuir, com a exagerada utilização de fertilizantes e todo o género de bioquímicos que, lenta mas inexoravelmente, vão degradando os alimentos, provocando e activando enfermidades antes desconhecidas, empobrecendo os solos e inquinando as águas. Isto sucede no chamado mundo rico, porque nos países excluídos do progresso moderno a exploração desenfreada das multinacionais tem-lhes levado a fome e a miséria mais desumanas. É uma situação insustentável que mesmo nos países abastados, em rápido processo de engorda, pode levar a profundas convulsões sociais e sobretudo a uma inadiável revolução agrícola. Seja agricultura verde, seja biológica, algo tem de acontecer em tempo útil, enquanto o solo arável não tiver sido completamente destruído pelos químicos poluentes e pela urbanização selvagem. Porque é da terra que temos de continuar a comer.
A terra, num futuro mais próximo do que imaginamos, terá de sofrer profunda conversão. Na recuperação dos sistemas de rega, no plantio de áreas hortícolas, no incentivo da policultura, na redistribuição da propriedade e, sobretudo, no controlo e na posse social da terra.
Todo este processo, imparável a médio termo, vai necessitar outra vez de camponeses, de alguém que saiba ainda trabalhar os campos. A terra, pela sua raridade cada vez mais preciosa, tende necessariamente a tornar-se, não só propriedade colectiva, como, sobretudo, um património cultural, como um bem social a preservar.
A agricultura capitalista, no seu afã exclusivo de lucro fácil, começa a mostrar a sua incapacidade de abastecer o seu próprio mercado e sobretudo de controlar a qualidade. E a qualidade alimentar começa a ser a pedra de toque de uma sociedade cada vez mais consciente e que neste sector não perdoa a ganância desenfreada dos agentes comprometidos nas mais graves manipulações químicas ou genéticas.
E, no entanto, actualmente todo o sistema de comercialização continua a avaliar os géneros alimentares pelo seu exclusivo peso-valor. Porém, muito brevemente, será decisivo o controlo de qualidade, em que serão excluídos os pesticidas, antibióticos, hormonas e todos os venenos químicos que hoje são incorporados ao alimentos que consumimos diariamente.
Embora tímida, em vários pontos da Europa, e também entre nós, em simultâneo com a concentração em bairros urbanos periféricos dos camponeses do interior rural, é já sensível uma sensação de clausura, um desejo de fuga da selva urbana em que se transformaram as antigas cidades onde ainda há poucos anos era sensível e dominante a escala humana. Os actuai e desproporcionados monstros urbanos têm vindo a matar a sua própria razão de ser. A antiga cidade, a polis mediterrânica – Lisboa e tantas outras – têm vindo a assistir à destruição inexorável da sua cintura agrícola. As suas hortas e pomares, tão celebrados – de loures, de Frielas, da Amadora – estão agora debaixo de prédios e ruas asfaltadas, soterradas por lixeiras e esgotos. Os problemas não vêm apenas da construção, do cimento, e sim do que tudo isso implica, como poluição da terra e das águas. Dentro de poucos anos, toda essa gente em expansão desordenada não vai poder aqui sobreviver. As belas cidades antigas, com os cascos históricos que serviam de pólo aglutinador e de referência cultural, que foram a matriz da nossa civilização, estão a ser abandonados, num estado deplorável de degradação arquitectónica e social. Os bairros-dormitório dos arrabaldes, sem alma e sem qualquer identidade, abrigo privilegiado da marginalidade e da violência, proliferam como cogumelos, entregues em exclusivo aos interesses da especulação imobiliária.
Por outro lado, as zonas rurais do interior estão a ser sistematicamente despojadas dos seus apoios cívicos e administrativos: as escolas fecham por terem poucos alunos, os postos de correio desaparecem, os meios de transporte colectivos são eliminados, os serviços sociais são centralizados, e até costumes culturais e alimentares, fortemente enraizados, são esquecidos ou proibidos porque, simplesmente, não se coadunam com os gostos e hábitos das anafadas sociedades anglo-saxónicas. Tudo isto são incentivos ao abandono das zonas rurais e à superconcentração urbana.
Quero crer, porém, que as zonas rurais do interior, onde ainda resta terra limpa e água não poluída, serão um crescente atractivo e que, numa só geração, irão beneficiar de uma importante recuperação demográfica. Este movimento para o interior, se hoje é ainda incipiente, muitas vezes apenas alimentado pelo turismo ou por um certo romantismo de regresso à natureza, vai com certeza transformar-se num percurso vital de populações, sobretudo jovens, que procuram sobreviver. A água e a terra, como bens cada vez mais preciosos, a própria sociabilidade solidária, continuam a ser indispensáveis para a alimentação do corpo e saúde mental do ser humano, que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, não é muito diferente do barbudo pré-histórico.
Cláudio Torres, “O Alentejo Agrícola – um pouco de história”

quarta-feira, abril 30, 2014

A voz da floresta africana



Quando alguém entra numa floresta africana caminhando entre a vegetação, parece ser cercado por um silêncio misterioso mas, se tiver paciência de sentar-se sobre um tronco a descansar e a escutar, então a voz da floresta far-lhe-á ouvir a sua voz, as suas harmonias e as suas mensagens através da boca dos animais, das aves e dos antepassados.
Pe. Salvatore Cammilleri, “A Identidade Cultural do Povo Balanta”

domingo, março 09, 2014

Sobre a literatura Maria-vai-com-as-outras...



Arquei com o papel em branco como lavrador com a jeira de terra que tem de vessar, gradar, atafolhar, fazer produtiva mercê do sementio, e retrocedi aos caos, primeira fase do meu artigo como do mundo organizado. Penei, suei, rangi os dentes, mas fui avançando. A certa altura, depois de uma passagem laboriosa, de pena suspensa ao alto a considerar com um ar miserando a minha inópia mental, senti a cadela da fome a derriçar-me nas entranhas. Era a primeira vez que dava sinal, mas dali em diante não me consentiu mais tréguas. Embora, naquele dia, trabalhando por várias torturas, pude avistar a cumeada alta e agreste do ofício de escritor! Nunca passará da cepa torta o profissional que tome as palavras pelo seu valor bursátil, isto é, pela sua significação léxica. As palavras são dotadas de tantas qualidades quantas as intrínsecas ao desfrute dos nossos cinco sentidos. Possuem cor, timbre, um timbre diferente da sua prosódia, aroma e certamente densidade. O verdadeiro escritor, quando trabalha sobre o papel branco, procede ao seu emprego em correspondência com estes tópicos. Simultaneamente, trata-as como notas musicais para que não desafinem; como elementos fazendo parte duma escala cromática, para que uma página não seja uma laude de Outono, mortiça e gregoriana. Se descrever a neve, que as palavras voem e revoem no ar, iriadas como as flores da macieira, e se uma sécia ou um papo-seco perfumados, que não seja preciso falar no ylang-ylang para lhe aspirar a droga.
Entre as palavras há simpatias e repulsões instintivas como em todos os seres vivos. L’épithète doit être la maîtresse du substantif, jamais sa femme légitime, escrevia Alphonse Daudet. Cuidado com o relacionamento de uns termos com outros. De facto, têm a sua sensibilidade e cada qual uma política. O pior inimigo da palavra escrita é o lugar-comum, o possidónio, o refervido, resultantes do hábito, da vicieira de falar, do Maria-vai-com-as-outras. Dispô-la num tauxiado imprevisto mas lógico, com ressonância determinada e o seu mundo à espalda, eis o problema. Quanto a ideias, temos conversado. O homem é uma máquina de pensamento, mas a secreção mental sob o ponto de vista literário é tanto melhor quanto menos se pareça com a do seu semelhante. O afrondoso, o díspar, o herético não destoam no haver dum escritor original ou simplesmente digno. O oiro é sempre o mais distinto e o mais raro. Já o pensamento de todos e de cada um é moeda de cobre que não dá para coisa nenhuma. Era com dobrões que em Roma se comprava a salvação.
Aquilino Ribeiro, “Lápides Partidas”

terça-feira, março 04, 2014

Esquivas delicadas do corpo...

“Gosto muito de boxe”, disse eu. Então, Iraklis disse-me que o campeão Malangomas de Caria, modesto homem nascido na Ásia Menor nos tempos de Cristo, ficou famoso por não golpear nem receber golpes dos seus adversários devido às suas esquivas delicadas do corpo (lembrei-me de Muhammed Ali, um ícone da minha geração) que enfureciam os seus adversários e os levavam a desistir.
Jacinto Rêgo de Almeida, “Desporto de alta competição”, JL n.º 1129 Janeiro 2014

sábado, fevereiro 15, 2014

A fecundidade que há na escassez

As nossas escolas são feitas para a aprendizagem da palavra, do discurso, do conceito, do saber fazer. E faltam-nos mestres do silêncio, escolas que permitam aprender a não fazer, a pausa, a interrupção, os caminhos silenciosos, a contenção. Ou seja, a aprendizagem da arte do silêncio, a fecundidade que há na escassez, o vigor que existe na sede. Mas toda a nossa sociedade caminha noutro sentido.
José Tolentino Mendonça, em entrevista a Maria Leonor Nunes, JL n.º 1127 Dezembro 2013

domingo, fevereiro 02, 2014

Ao sol



Antes de 1914, as mulheres protegiam-se do sol para não se parecerem com as camponesas; agora fazem-se assar como pêssegos carecas para não se parecerem com as operárias.
Michel Germont, “Uma Morte Perfeita”

sábado, janeiro 18, 2014

Adão & Eva

Toda a moral que a humanidade erigiu durante séculos, com árduo esforço de severos filósofos e clérigos, apenas visa conceder mais sofisticação e verniz à ideia de que a mulher e a sua vagina estão ao serviço do homem. Quando Deus tirou uma costela de Adão e lhe soprou para dar vida a Eva estava na verdade a criar a primeira boneca insuflável. Ok, talvez a história bíblica não seja bem assim, mas não parece que o homem a tenha entendido de outra maneira.
Rui Ângelo Araújo, “Os Idiotas”

domingo, janeiro 12, 2014

toka-tchur

Não sendo tão quente quanto alguns noutros lugares de Angola, Saurimo é um lugar quente, desertificado, plano, de terra batida, e impõe uma exigência muito grande para ali se ficar. Essa mesma experiência de tudo conspirar existe ali, e o misticismo levado ao extremo. Eles acham que ninguém morre por natureza, que se morre por inveja, por mau-olhado. Mesmo quem vive até aos 102 anos, no momento em que morre não é de velhice, morre porque alguém lhe rogou uma praga, o desprezou, lhe desejou a morte. Parece horrível mas é muito bonito. Eles acham que se conseguirem eliminar as invejas, as cobiças, se conseguirem criar uma sociedade puramente justa, vão conseguir ensinar a natureza a deixar-nos ser eternos, porque deixou de haver razão para que as pessoas morram. Ficaremos velhos e mais velhos porque ninguém nos quererá mal. Esta esperança define-os, é uma forma de acreditar que o mundo vai ser melhor.
Valter Hugo Mãe, em entrevista a Ana Sousa Dias, Ler – Livros & Leitores, n.º 128, Outubro 2013

quinta-feira, janeiro 02, 2014

...enxames de diabinhos largar pelas janelas, arrepelando-se e batendo as nádegas, furibundos



O senhor padre Ambrósio, meu bom mestre, revestido de pluvial a lhama de prata e franja de oiro, com o Tiago do Eido de caldeirinha à mão esquerda, brandindo a hissope por sobre as cabeças submissas, passeou o recinto em cruz. Ao tempo que os seus lábios proferiam a antífona asperges me, o movimento do braço, repartindo a água com a cadência ordenada de um semeador, afugentava dos corpos e das almas os espíritos malignos, os génios do mal e toda a classe de potências do reino das sombras. E era ao cabo daquela prática que os olhos ditosos de D. Ludovina, beata que floria os altares e comungava todas as sextas-feiras, viam enxames de diabinhos largar pelas janelas, arrepelando-se e batendo as nádegas, furibundos.
Aquilino Ribeiro, “A Via Sinuosa”