sábado, janeiro 18, 2014

Adão & Eva

Toda a moral que a humanidade erigiu durante séculos, com árduo esforço de severos filósofos e clérigos, apenas visa conceder mais sofisticação e verniz à ideia de que a mulher e a sua vagina estão ao serviço do homem. Quando Deus tirou uma costela de Adão e lhe soprou para dar vida a Eva estava na verdade a criar a primeira boneca insuflável. Ok, talvez a história bíblica não seja bem assim, mas não parece que o homem a tenha entendido de outra maneira.
Rui Ângelo Araújo, “Os Idiotas”

domingo, janeiro 12, 2014

toka-tchur

Não sendo tão quente quanto alguns noutros lugares de Angola, Saurimo é um lugar quente, desertificado, plano, de terra batida, e impõe uma exigência muito grande para ali se ficar. Essa mesma experiência de tudo conspirar existe ali, e o misticismo levado ao extremo. Eles acham que ninguém morre por natureza, que se morre por inveja, por mau-olhado. Mesmo quem vive até aos 102 anos, no momento em que morre não é de velhice, morre porque alguém lhe rogou uma praga, o desprezou, lhe desejou a morte. Parece horrível mas é muito bonito. Eles acham que se conseguirem eliminar as invejas, as cobiças, se conseguirem criar uma sociedade puramente justa, vão conseguir ensinar a natureza a deixar-nos ser eternos, porque deixou de haver razão para que as pessoas morram. Ficaremos velhos e mais velhos porque ninguém nos quererá mal. Esta esperança define-os, é uma forma de acreditar que o mundo vai ser melhor.
Valter Hugo Mãe, em entrevista a Ana Sousa Dias, Ler – Livros & Leitores, n.º 128, Outubro 2013

quinta-feira, janeiro 02, 2014

...enxames de diabinhos largar pelas janelas, arrepelando-se e batendo as nádegas, furibundos



O senhor padre Ambrósio, meu bom mestre, revestido de pluvial a lhama de prata e franja de oiro, com o Tiago do Eido de caldeirinha à mão esquerda, brandindo a hissope por sobre as cabeças submissas, passeou o recinto em cruz. Ao tempo que os seus lábios proferiam a antífona asperges me, o movimento do braço, repartindo a água com a cadência ordenada de um semeador, afugentava dos corpos e das almas os espíritos malignos, os génios do mal e toda a classe de potências do reino das sombras. E era ao cabo daquela prática que os olhos ditosos de D. Ludovina, beata que floria os altares e comungava todas as sextas-feiras, viam enxames de diabinhos largar pelas janelas, arrepelando-se e batendo as nádegas, furibundos.
Aquilino Ribeiro, “A Via Sinuosa”