quinta-feira, dezembro 29, 2011

Inflação editorial...

verifica-se hoje uma verdadeira inflação editorial. Publica-se tudo. E as técnicas comerciais de aumento de produção e expansão de mercados assenhoram-se por completo do sector, inundando com publicidade os meios de comunicação, impondo o livro ao comprador como se artigo de consumo se tratasse, e saturando as almas com doses de literatura em quantidade que supera a capacidade de leitura do público dos nossos dias. Natural, portanto, que as respostas ao direito de informação, em obediência a imperativos de natureza cívica ou doutrinárias, sejam sorvidas na torrente de publicações adquiridas num momento de menos ocupação e logo colocadas em prateleira de estante à espera de uma oportunidade de reflexão; ou então sejam lidas apressadamente sem o esforço de análise crítica que merecem, suscitando, por isso, quantas vezes, perigosas ou inconvenientes desvirtuações do pensamento ou da mensagem que contêm.
Parece então haver razões para se admitir que esse excesso de produção literária, dirigida a um público a quem se torna cada vez mais difícil definir critérios selectivos e sobrecarregando um escol para quem os dias são progressivamente mais curtos, esteja a retirar ao livro o seu carácter de instrumento por excelência de consciencialização humana, desse modo se acelerando o processo de massificação das sociedades. E quando se assiste no mundo inteiro à violação das consciências reduzidas à fixação de slogans, se observa a crescente alienação dos seres humanos perante os manipuladores de massas e se verifica a flagrante dualidade de verdades equívocas servindo causas opostas, então é lícito duvidar-se do interesse no debate de ideias, tornado inconsequente pela falta de eco em sociedades cada vez mais vazias e menos capazes de fruir os direitos em nome dos quais se deixaram mobilizar por interesses de minorias que lhes condicionam os padrões de atitude.
Perante essa limitação do sentido crítico, hoje extremamente facilitada pelo controlo da informação, as razões para que se publique um livro terão de ser suficientemente ponderosas em ordem a vencer a natural relutância decorrente de tantas interrogações.
António de Spínola, “Portugal e o Futuro” (1974)

domingo, dezembro 25, 2011

De um grupo de funcionários que ninguém elegeu...


vista de fora, a Zona Euro parece um daqueles países em vias de desenvolvimento, a quem o FMI impôs um dos seus rígidos programas de estabilização que o tornaram tão famoso: baixa inflação, rectidão fiscal, desregulamentação, privatização; tudo comandado por um grupo de funcionários que ninguém elegeu.
Andrea Boltho, «What’s Wrong with Europe», New Left Review, Julho-Agosto, 2003, p. 20

domingo, novembro 27, 2011

O tio da América


E aqui te declaro: boa, boa fortuna são os braços rijos e a alma escorreita. A outra, de fazendas e capitais, também conta, não digo que não. Mas para a gente apreciar quanto vale, saber saboreá-la como limão espremido na água quando se tem sede, saber defendê-la dos baldões da sorte, forçoso é que a tenhamos amassado por nossas mãos. Essas que desabam das nuvens, vêm por um tio da América, a lotaria ou a vermelhinha, arrenego delas. O azar as deu, o azar as leva. Sou tão ignorante como tu, mas capacito-me que trazem consigo mandinga, qualquer princípio inflamável e, às duas por três, ardem nas mãos, nos cofres, no que estejam empregadas, para não quedar mais do que cinzas e fumo no ar.
Aquilino Ribeiro, “A Batalha Sem Fim” (1930-1931)

domingo, novembro 20, 2011

Quer a razão queira, quer não...


S. Martinho de Anta, 24 de Setembro de 1940 – Vindima. Um cesto de uvas, ao todo! O míldio, a chuva e a geada reduziram oito pipas a meio almude. Meu Pai fala nisto, e fica branco. Mas estejam os elementos e os micróbios certos do seguinte: é que o velho se vai atirar à tesoura, à poda, à erguida, à cava, à redra, ao enxofre e ao sulfato como se as vinhas tivessem dado vinho para as bodas de Caná. Quando se é lavrador como o meu Pai é, o corpo acaba por cavar, quer a razão queira, quer não.
Miguel Torga, “Diário I”

sexta-feira, novembro 18, 2011

Chás e endireitas

Endireita dos ossos era o ZÉ PINTO, da mesma família do capador. Casou para a Vila da Ponte e ganhava mais segadores para o centeio como endireita dos ossos, que os cunhados todos a ganhar a geira. Como não cobrava dinheiro pelo seu artesanato, tudo fazia de graça e a rir, os clientes gemiam e riam ao mesmo tempo, porque ele contava-lhes umas histórias da imaginação que os pacientes tinham vontade de rir. Só dizia à mulher: Ó Maria traz cá uma trança de linho e uma clara de um ovo... e enquanto localizava a quebradura dos ossos distraía o doente de tal maneira que nem dava pela cura, só dizia um AI.
E de CHÁS sabia ele, que tinha um velho alfarrábio com todas as doenças das mais variadas maleitas e os remédios de CHÁ para todas elas.
Padre Manuel Alves, “Parafita – Foral concedido pelo Rei de Portugal D. Afonso III (31 – Maio – 1298) – Análise Histórica –“

domingo, novembro 13, 2011

Europa vs. América

Considere-se uma chávena de café americano. Em qualquer lado se encontra. Qualquer um pode prepará-la. É barata – e as segundas doses são gratuitas. Dado que, em grande parte, não tem sabor, pode diluir-se à vontade. O que lhe falta em sedução é compensado pelo tamanho. É o método mais democrático já inventado para introduzir cafeína em seres humanos. Agora vejamos uma chávena de espresso italiano. Requer equipamento caro. A relação preço-qualidade é escandalosa, dando a entender indiferença pelo consumidor e ignorância do mercado. A satisfação estética da bebida supera de longe o seu efeito metabólico. Não é uma bebida, é um artefacto.
Tony Judt, “O Século XX Esquecido – lugares e memórias”

domingo, outubro 30, 2011

Dũa austera, apagada e vil tristeza


Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil tristeza.
Luís Vaz de Camões, “Os Lusíadas” – canto X, 145

sexta-feira, outubro 21, 2011

Dolorosas infâmias...


As revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal de que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade.
Decerto que os horrores da revolução são medonhos, decerto que tudo o que é vital nas sociedades, a família, o trabalho, a educação, sofrem dolorosamente com a passagem dessa trovoada humana. Mas as misérias que se sofrem com as opressões, com os maus regimes, com as tiranias, são maiores ainda. (...)
As desgraças das revoluções são dolorosas fatalidades, as desgraças dos maus governos são dolorosas infâmias»
Eça de Queirós, in “Distrito de Évora”, 1867

segunda-feira, outubro 17, 2011

Arte Sacra

O clero português, mesmo aquele que sai dos seminários todo cheio de tomismo e liturgia, em arte é de uma ignorância imensurável. Vá o meu querido doutor por essas igrejas fora. As imagens do Sagrado Coração de Jesus e do Coração de Maria, de Nossa Senhora de Lurdes, do Santo Condestável e da Nossa Senhora de la Salette, duma pulcritude reles, desbancaram as velhas imagens cheias de séculos, góticas tantas vezes. Por outra, como estas parecem feias, sem beleza celestial, entregam-nos ao imaginário, que as desbasta, alinda, ou simplesmente avilta sob a encarnação acatitada. Os templos românicos, que abundam por esta província, foram demolidos para dar lugar à igreja alta, sem graça nem estilo, género telheiro de fábrica. Os padres queimam os velhos paramentos, brocados do Renascimento, chamalotes que são maravilhas de tecelagem, porque estão velhos! Por modos autoriza-os o ritual.
Aquilino Ribeiro, “O Homem Que Matou o Diabo”

segunda-feira, outubro 10, 2011

Filosofei...

Coimbra, 15 de Abril de 1943 – Era preciso dizer-lhe que o fumo lhe fazia mal, lhe aumentava a tosse e o pigarro. Nos livros, pelo menos, vinha assim. Mas filosofei:
- Olhe, a vida, sem uma pitada de risco, não presta. Eu cá sou por um diabo que se esconda no bolso do colete, enrolado numa mortalha, e nos atente para que lhe cheguemos um fósforo ao rabo de vez em quando. Intoxica, mas é um regalo vê-lo depois desfeito em cinza, vencido à custa de um segundo da nossa vida.
Miguel Torga, “Diário II”

quinta-feira, outubro 06, 2011

...e disto nunca se viu castigo!

Senhor, os reis são vassalos de Deus; e se os reis não castigam os seus vassalos, castiga Deus os seus. A causa principal de não se perpetuarem as coroas nas mesmas nações e famílias é a injustiça, ou são as injustiças, como diz a Escritura Sagrada; e entre todas as injustiças, nenhumas clamam tanto ao céu, como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres, e as que não pagam o suor aos que trabalham: e estes são e foram sempre os dois pecados deste Estado, que ainda têm tantos defensores.
A perda do Senhor Rei D. Sebastião em África, e o cativeiro de sessenta anos que se seguiu a todo o reino, notaram os autores daquele tempo que foi castigo dos cativeiros que na costa da mesma África começaram a fazer os nossos primeiros conquistadores, com tão pouca justiça como a que se lê nas mesmas histórias.
As injustiças e tiranias que se têm executado nos naturais desta terra excedem muito às que se fizeram na África. Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram, por esta costa e sertões, mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações como grandes cidades; e disto nunca se viu castigo.
Padre António Vieira, “Carta ao Rei D. Afonso VI” (1655)

sexta-feira, setembro 30, 2011

Censurado...




A cada cinco segundos, uma criança morre de fome. Não há dinheiro porque este é usado para salvar bancos.
Jean Ziegler, antigo relator especial do Concelho de Direitos Humanos na ONU para o direito à alimentação [Convidado a proferir um discurso durante a inauguração do Festival de Salzburgo, foi dispensado à última hora. Veio a publicar o seu discurso numa brochura.]

terça-feira, setembro 27, 2011

Hábitos


Era outro hábito: quando estava doente, mergulhava num romance de Alexandre Dumas pai: possuía as obras completas deste, numa velha edição popular de páginas amarelecidas e gravuras românticas, e bastava o cheiro que emanava desses livros para se recordar de todas as pequenas doenças da sua vida.
Georges Simenon, “Maigret e o Seu Morto”

sexta-feira, setembro 23, 2011

O kriol guineense

O crioulo da Guiné teve origem na língua portuguesa falada entre os séculos XV e XVII. Tornado idioma veicular das diversas populações da Guiné-Bissau, nele se misturam e confundem a vida e a memória de uma infinidade de locutores-transmissores, num espaço onde todos põem tudo e onde a escrita, por enquanto, não tem lugar.
Uma língua em gestação persegue a economia. Mas uma língua em liberdade não tem pressa e deixa que o excesso se espraie em todas as direcções, já que a eficácia da comunicação é assegurada por instâncias não linguísticas. Ao lado e antes das palavras, está a plena proximidade que não permite equívocos nem produz ruídos: o calor, a mímica, o contacto físico fazem soçobrar as regras já erigidas noutros lugares. (...)

O conto crioulo é um milagre sempre recomeçado. Miragem dos grandes e dos pequenos, realidade para todos e apesar de tudo, ele transforma o verbo em júbilo pela magia de uma língua mutante, feita de raízes africanas e europeias e de palavras mestiças.
Filho da mistura, o conto crioulo faz viver a palavra e vive da palavra que anima personagens familiares. Sejam eles Caçador, Feiticeiro, Combossa, Pauteiro, Bajuda submissa ou rebelde, estes arquétipos articulam-se segundo esquemas dinâmicos.
Teresa Montenegro e Carlos de Morais, “Uori – stórias de lama e philosophia”, Ku Si Mon editora

sábado, setembro 17, 2011

Génesis do vinho



Segundo o Génesis, Cap. IX, foi Noé o primeiro a plantar a vinha e a embriagar-se com o vinho.
Hernâni Cidade, notas a “Os Lusíadas” de Luís de Camões, 75,6 Canto VII

domingo, setembro 11, 2011

Dos artistas

Buarcos, 13 de Junho de 1943 – Dia entre pescadores. Eles a pescarem sardinha para a fome orgânica do corpo, e eu a pescar imagens para uma necessidade igual do espírito. Tisnados de saúde, os homens olham-me; e eu, amarelo de doença, olho-os também. Certamente que se julgam mais justificados do que eu, e que o mundo inteiro lhes dá razão. Mas de mesma maneira que eles, sem que ninguém lhes peça sardinha, se metem às ondas, também eu, sem que ninguém me peça poesia, me lanço a este mar da criação. Há uma coisa que nenhuma ideologia pode tirar aos artistas verdadeiros: é a sua consciência de que são tão fundamentais à vida como o pão. Podem acusá-los de servirem esta ou aquela classe. Pura calúnia. É o mesmo que dizer que uma flor serve a princesa que a cheira. O mundo não pode viver sem flores, e por isso elas nascem e desabrocham. Se olhos menos avisados passam por elas e não as podem ver, a traição não é dela, mas dos olhos, ou de quem os mantém cegos e incultos.
Miguel Torga, “Diário III”

terça-feira, setembro 06, 2011

De Lamego


- Com grande consolo, depois de ver uns países tão raivosos de progressos, vim topar Lamego não só não eivado da noção do tempo mas refractário de todo à febre moderna. Cheguei ao correio, e os funcionários ressonavam, com os carimbos ao lado, sobre os maços da correspondência, trazida a toda a pressa nos comboios rápidos e transatlânticos. Palavra! só depois do meu regresso pude gozar este espectáculo singular de ver à luz do dia a vida a viver!
Aquilino Ribeiro, “A Via Sinuosa”

quarta-feira, agosto 31, 2011

Sobre um país de brandos costumes...




Os pretos em África têm de ser dirigidos e enquadrados por europeus mas são indispensáveis como auxiliares destes
Marcelo Caetano, “Os Nativos na Economia Africana” (1954)

domingo, agosto 21, 2011

Um café!

Certo dia, explodiu numa grande danação contra o neto, que à viva força teimava que ela havia de beber café. «Posso lá com tal bebida!», gritou-lhe o Costa Cardoso. «Uma planta que só nasce em zonas doentias da África e do Brasil, onde se morre de febres medonhas! E o grão? Quantos trabalhos para trazê-lo, ao lombo, sob o fogo do Sol, até à Costa? Quantos trabalhos para embarcá-lo, atravessar as tempestades do oceano, desembarcá-lo, torrá-lo, moê-lo. Pois, após tantas canseiras, tantas, mal mergulham o pó na cafeteira, zás, deitam-no fora! E essa mixórdia deixa a água tão suja e amarga que só com açúcar conseguem bebê-lo! Não! Nunca hei-de tocar-lhe sequer!»
Manuel da Fonseca, “À Lareira, nos Fundos da Casa onde o Retorta Tem o Café”

quarta-feira, agosto 17, 2011

Anagogia!


Instruir é juntar, de fora, alguma coisa ao que já foi dado, como quem reboca parede depois de ser construída e, num refinamento, de estética ou de protecção, passa ainda sobre o reboco seu estuque e sua tinta. Na instrução, considera-se que o menino, ou grande, é parede mal aparelhada e se lhe vai juntando, conforme os recursos, o que for necessário para que se torne mais útil na sua função de parede. Na instrução sou trolha: sei o que quero, de que argamassa disponho ou qual a cal que me convém: estou tranquilo em meu andaime e marco a cada dia a obra feita.
Com a educação, tudo se passa ao contrário: se no instruir sou trolha, no educar, e bem o sabemos já desde o tempo do velho Sócrates, sou eu parteiro. Tenho de ter ciência naturalmente; mas o que tem de esplender cá fora já se encontra lá dentro, e as minhas qualidades principais têm de ser a paciência e o usar de todos os meios que possam fazer dá-lo à luz sem traumatismos nem mutilações. Para o educador, a criança já está interiormente pronta, tal como será o adulto ideal, mas trata-se de a ir colocando em todas as circunstâncias propícias para que se desenvolva, o que significa, como se sabe, que se desembrulhe, se desembarace do que a impede de ser o que é. Quem instrui ataca; quem educa espera. Quem instrui pode fazer o que quer, como um escultor martela estátua; vai o educador pelos caminhos do criador do bicho-da-seda: dá-lhes as folhas certas na altura certa, depois os raminhos secos de encasular, depois os panos da postura, mas a comparação por aqui pára: não mata nunca o bicho no casulo; o que lhe interessa é borboleta voando livre, em sua ruflante brancura; quem instrui apenas mais interessa a seda que o organismo vivo.
Com muita razão se compendiou a ciência do instruir na palavra pedagogia, que significa, na ua etimologia grega, o empurrar de meninos; empurramo-los para o ler, o escrever e o contar, mesmo que o não queiram, já que é a escola obrigatória, até mais obrigatória que a vida, pois até com fome, frio e mau trato se tem de lhe ir à frequência; mais tarde o empurramos para o liceu, se é de boa classe, para os cursos técnicos, se destinado a servir, portanto ao fim de um está a Universidade, ao fim dos outros a oficina, que se nem pensem em juntar, alternando os períodos, por ser ideia, ao que parece, subversiva. Empurra-se o menino, empurra-se o adolescente, empurra-se o adulto: somos todos uns excelentes pedagogos: empurramos.
Mas vai agora surgindo outra atitude, marcada por outra palavra, a de anagogia, ou acto de levar para cima ou de fazer subir; aqui ninguém empurra ninguém: se a perna se mostrou firme e ágil, e só os anormais não a têm assim, vai-se pondo degrau após degrau, até que atinja a maior altura possível, segundo a vocação e as forças que haja em cada um, com um primeiro degrau ao alcance de todos e não apenas dos privilegiados, e sempre um último degrau, pois pouco sabemos dos limites humanos e das fronteiras do mundo. O que temos tido até agora, sob o nome de pedagogia, é de facto, e geralmente violenta, até com o professor batendo e castigando, uma catagogia ou condução para baixo, para muito baixo do que permitiria e sofreria nossa natureza humana; somos instruídos para não crermos em nós, para nos submetermos, para obedecer, não para criar, que foi ao que viemos; venha, pois, a anagogia, o caminho para cima, o mais depressa possível.
Instruir sem educar pode ser a mais perigosa das empresas em que se empenha um homem ou um país, pois que vai pôr instrumentos de vida ou morte nas mãos de quem, se não ignaro por nascimento, ignaro se tornou porque não houve a tal anagogia; toda a vida se transforma em automóvel guiado por inconsciente, coisa que, ao que parece, se multiplica. E aqui temos que nos lançar com todo o nosso esforço: se é fácil abrir escolas ou pode ser fácil mandar à escola, de nada servirá fazê-lo se, ao mesmo tempo, se não fizer educação: a qual, como é simples concluir do que se disse atrás, são condições essenciais a liberdade económica, abrindo o campo, a oficina e a cooperativa, escola em si própria, antes de abrir a sala de aula, a liberdade de informação e de expressão, abolindo tudo o que a possa limitar, mesmo no que mais pareça necessário, já que os prejuízos que vêm da fala franca são sempre menores que os que resultam do silêncio forçado; a liberdade de pensamento, no domínio político, no domínio metafísico, no domínio religiosos, que continuo a ver como o mais importante, mas possível e desejável fora das religiões institucionais tanto como dentro delas; aqui, na liberdade de pensamento, temos a condição fundamental de ser homem: e tão raramente, tão fugazmente, a temos tido na história da Humanidade, que bem conviria ser esse o campo em que, resolvidos os problemas materiais de todos, concentrássemos o nosso sonhar, o nosso querer, o nosso agir.
Agostinho da Silva, «Composição do Brasil», Vida Mundial, n.º 1711, 24 de Março de 1972

segunda-feira, agosto 08, 2011

Dos suíços...


Pensando na calma, na fleuma, no civismo dos Suíços, que por vezes toca as raias da mania, lembro-me agora duma frase da marquesa de Quintanar, que acabava de passar seis meses na Suíça, no sanatório, com a filha doente. De regresso a Madrid, ao descer do avião, explodiu:
- Caramba! Já se pode cuspir no chão!
E tirando da algibeira uns poucos papéis de rebuçados amarrotados, espalhou-os aos quatro ventos, num gesto vingativo que muito a aliviou.
Fernanda de Castro, “Ao Fim da Memória II 1939 – 1987”

sexta-feira, agosto 05, 2011

Velocidades


Coimbra, 26 de Junho de 1944 – Aflitiva a impaciência que começo a sentir nos comboios. Cada paragem, cada abrandamento de velocidade dão-me cabo dos nervos. Desespero-me por levar sete horas de Coimbra a Lisboa, quando eu sei que já foram precisos dias para percorrer tal trajecto. Mas não há História que me console. Ponho-me a pensar assim: nesse tempo a coisa era com cavalos, e uma solidariedade de suor, um limite muscular que a nossa própria animalidade media, ajudavam a respeitar o ritmo fisiológico do movimento. Rebentar montadas era um recurso extremo, que não se fazia sem dor. A espora que feria a ilharga tingia-se de sangue, mesmo que fosse de oiro. De maneira que o cilício que picava a besta picava o homem. Mas já que o progresso se riu da mula chocalheira e da diligência, então quero a mecânica a mil à hora, a velocidade levada até onde a corda der. Entregou-se o caminho não a cascos caseiros e familiares, mas a eixos de aço. Haja, por conseguinte, um chicote de lume a fazer voar as rodas.
E não será um sentimento idêntico ao meu que gera este delírio da velocidade, esta corrida cada vez mais desesperada do nosso tempo? Quebrou-se a amarra do navio; e os tripulantes, agora, o que querem é um vendaval que os leve o mais depressa possível a qualquer porto ou à morte.
Miguel Torga, “Diário III”

terça-feira, agosto 02, 2011

Douro, vulgo d'oiro


o Douro é a paisagem vinhateira mais bela do mundo acima de Bordeus ou de Champagne. a sua grandiosidade é obra do homem de rosto descoberto que removeu xistos e ergueu socalcos a braços. o Douro é essa escadaria monumental de vinhedos plantados em xisto.
José A. Salvador, “Projecto Património” n.º 2 Julho 1995

quinta-feira, julho 28, 2011

Como os grandes comem os pequenos...


A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comerem os grandes, bastara um grande para muitos pequenos, mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.
Padre António Vieira, “Sermão de Santo António aos peixes” (1642)

sexta-feira, julho 22, 2011

Sobre a guerra colonial


Dirigiu a mais três camaradas brancos a pergunta sobre as suas origens e percebeu que muitos desses homens da Metrópole, se não mesmo a maioria, eram gente do campo, agricultores que a guerra arrancara de Trás-os-Montes, da Beira Interior ou do Alentejo e atirara para o meio do mato em África.
Realmente!, raciocinou, os olhos a deambularem entre os soldados rudes que jantavam com grunhidos, arrotavam em abundância e limpavam a boca às costas das mãos. Como levar a cabo a missão civilizadora se os próprios civilizadores precisavam de ser civilizados?
José Rodrigues dos Santos, “O Anjo Branco”

segunda-feira, julho 18, 2011

Ao sete mil milionésimo cidadão do mundo...


em 2011, ou o mais tardar no início de 2012, espera-se a chegada do sete mil milionésimo cidadão do mundo. Este cidadão tem sete em dez hipóteses de nascer num país pobre, numa família desfavorecida. Devemos enviar-lhe uma mensagem de boas-vindas ou uma carta a pedir desculpa?
George Minois, Le Poids du Nombre, Éditions Perrin, Paris, 2011

sexta-feira, julho 15, 2011

segunda-feira, julho 11, 2011

Luciferinamente...


Coimbra, 5 de Maio de 1946 – (...)
Sou realmente do partido do diabo, como diz Blake de Milton. Comecei por me rebelar contra Deus, descri de todo, e agora estou num politeísmo sortido, ora dependurado nos cornos de Endovélico, ora a dormir nos braços da deusa Nábia, líquidos e frescos. Prego certos pecados, e gosto deles. Pratico-os com toda a minha energia e sinceridade, não por amor das forças do mal, como faria qualquer romântico, mas pela graça do bem que vejo neles. Pecados mortais, pecados veniais, pecados originais... Com franqueza! Além do mais, acho ridículo! O homem só peca contra o homem e contra as suas criações. (...) Sou da terra e sou por ela. Diabo, Santanás, Lúcifer, calham-me, pois, às mil maravilhas. Significam revolta, inferno, lume, enxofre, coisas positiva se vivas. E eu estou vivo. Anjo, fluido, sombra, é que me davam leveza de transfigurado, irrealidade de fantasma, pondo-me em contradição com os livros que escrevo, que são para serem lidos na terra, com palavras, ideias e enredos daqui, que os homens entendam e saboreiem.
Em consciência, sempre cuidei que era exactamente este o caminho construtivo e limpo de um artista, e mantenho-me nessa crença. Não me sinto um destruidor: o que quero é que tudo nasça com a força que as cousas verdadeiras e naturais merecem, e que o ranço velho não estrague o azeite novo. Na dialéctica da vida, por cada alento que vem, há uma morte. Será cruel. Mas isso é com a vida, não é comigo.
Comigo é o risco desta atitude humana, e já não é pouco. Ao fim e ao cabo, talvez que assim a minha alma se não salve, Deus me não queira depois no seu seio. Mas que calor animal (o único calor que eu quero num seio) tem o seio dele? Sim talvez não m queira depois de morto, quando eu já não tiver desejos, paixões, instinto, razão e sentimentos... Há-de ser muito triste, decerto. Mas mais triste seria eu negar-me agora ao aceno saboroso de Vénus, à voz cósmica de Pã, ao calor fecundante de Apolo, a todas as dádivas das amigas divindades terrestres que me solicitam.
Creio que tem havido na nossa terra uma descabida preocupação canónica à ilharga de cada artista. Interessa mais ao zelo nacional averiguar se um poeta morreu sacramentado, do que ler os seus versos. Ninguém quer saber se o caminho de um criador o leva à mora das musas e da beleza; espreita-se da janela, mas é para ver se ele vai à missa. Ora isto é de analfabetos, de pessoas que verdadeiramente não sabem nem querem saber do valor de um poema, do mundo de liberdade e de independência que ele encerra. E uma gente assim não me convém, nem tão-pouco o Deus intolerante que servem. Por isso me vou divertindo com as minhas divindades naturais, luciferinamente, certo que o diabo é ainda uma grande companhia. Foi a ele que Jesus disse que o seu reino não era deste mundo. E o meu, precisamente, é.
Miguel Torga, “Diário III”

sexta-feira, julho 08, 2011

Um dia aparece um livro...

Quando nascemos no campo rodeiam-nos de seguida os ambientes e as coisas mais antigas e essenciais. A terra, o vento, os rios, os pássaros, as árvores, as casas. Ama-se espontaneamente aquilo que os rodeia. Compreende-se, por intuição, os trabalhos misteriosos da terra e do céu. Os dias sucedem às noites. As árvores crescem. Os pássaros nidificam. Os animais procriam.
Um dia aparece um livro. Por puro acaso, ou desleixo, já lhe faltam o título, o nome do autor e as primeiras páginas. É o primeiro livro fora da escola e da catequese. É um livro à solta. Duas ou três crianças juntando esforçadamente as suas letras acabam por devorá-lo. É Verão. As crianças levam o livro para um lugar fresco. Para debaixo dessas ramas de ervilhas que crescem desenfreadamente com as dos feijoeiros pelas estacas, cheias de flores brancas e vermelhas. Jamais saberão o título daquele livro incompleto, mas foi por ele que alcançaram pela primeira vez o fascínio do mar que as montanhas circundantes não deixavam ver.
Não era nenhum livro de Melville, de Stevenson ou de Conrad. Era uma história simples para adolescentes sobre um homem em perpétua aventura pelos mares. Quando finalmente se julgava a salvo numa ilha e ia espetar a sua bandeira, apercebia-se de que estava, afinal, sobre o dorso de uma grande baleia e logo recomeçava a aventura.
Ao juntar as letras, ao articular as palavras e seguindo as frases, as crianças viam produzir-se um mundo fabuloso, inquietante, logo posto em movimento pela magia, lembrando o jogo de juntar água ao carboreto para produzir uma imensa luz azulada. Com o tempo, a leitura transformava-se em vício desejoso de íntima acção e deslumbramento. O fascínio descobre-se então em cada palavra, prescrutando os seus diversos significados, escolhendo-se os impulsos, provocando-lhes limites e extravasamentos, sentimentos inesperados, relacionamentos, surpresas conforme a sua situação e confrontos.
Manuel Hermínio Monteiro

segunda-feira, julho 04, 2011

Un viaje portugués


(...) le gustaría quedarse sentado en este camino, con el cigarro en los labios, como los viejos. El viajero es aún muy joven (o al menos eso quisiera), pero a veces, como ahora, le gustaría ser viejo. Así no tendría que andar vagando de un lado a otro e podría quedarse para siempre aquí sentado, mirando pasar la vida, sin tener que andar todo el día persiguiéndola inúltimente.
Julio Llamazares, “Trás-os-Montes (un viaje portugués)”

quinta-feira, junho 30, 2011

F(I)Mi


Perante esta dupla loucura dos trabalhadores, de se matarem com excesso de trabalho e de vegetarem na abstinência, o grande problema da produção capitalista já não consiste em encontrar produtores e decuplicar as suas forças, mas em descobrir consumidores, em excitar os seus apetites e criar-lhes necessidades fictícias.
Paul Lafargue (1842-1911), “O Direito à Preguiça”

domingo, junho 26, 2011

A linguagem da guitarra de Hendrix


Para além de Thomas Mann, que outros escritores são referências fundamentais para o seu trabalho?
Virgina Woolf, claro. Sobretudo pelo trabalho da linguagem, porque até ter lido Virginia Woolf não tinha a menor ideia daquilo que se podia fazer com uma frase. Estudei numa escola pública, em Los Angeles, e os meus professores não foram extraordinários. Digamos que, até uma certa altura, apenas estava familiarizado com as frases declarativas mais básicas. E foi nessa altura que alguém me ofereceu Mrs. Dalloway, e percebi que era possível fazer coisas extraordinárias com a linguagem. Era um miúdo e a ideia com que fiquei foi que o que a Virginia Woolf fazia com a linguagem era parecido com o que Jimmy Hendrix fazia com a guitarra, e isso marcou-me muito.
Michael Cunningham, em entrevista a Sara Figueiredo Costa [Ler n.º 101, Abril 2011]

terça-feira, junho 21, 2011

Uma ideia de futuro!


Uma ideia de futuro não terá necessariamente de ser nova, nanotecnológica ou macroeconómica. Poderá ser um conceito simples, como a responsabilidade social – não num restrito cumprimento de obrigações cívicas e civilizacionais, mas num sentido lato que nos compele a deixar o mundo melhor do que o encontrámos e nos faz sentir responsáveis por todos os que nos rodeiam. E eles por nós.
Nuno Guerreiro Josué, tradutor e jornalista [Ler n.º 100, Março 2011]

domingo, junho 19, 2011

Partir...


Como de costume, às oito, o sol começou a entrar pelo quarto dentro. Mas já não pôde, à semelhança das mais vezes, descer ao peitoril da janela, inundar o soalho, subir à cama, devorar pouco a pouco a colcha branca, incendiar um naco do cobertor vermelho, e acabar por bater-lhe em cheio nas meninas dos olhos. Hoje um e logo a seguir o outro, tinham partido.
Miguel Torga, conto “O Estrela e a Mulher” in “Rua” (1942)

segunda-feira, junho 13, 2011

sonhador, fraterno, anarquista, amoroso dos lírios do vale e das aves do céu, inútil, sobretudo inútil


Saudou-se muito, como um grande progresso para católicos, o único rebanho que ainda mantinha no a que chamam religião alguma coisa do que o cristianismo foi de início, isto é, oriental e mediterrânico, contrapondo-se ao protestantismo, geométrico, moral, cesarista, capitalista e útil; saudou-se, pois, muito, a sua modernização, quero eu dizer a sua falta de coragem para se manter o que sempre deveria ter sido, sonhador, fraterno, anarquista, amoroso dos lírios do vale e das aves do céu, inútil, sobretudo inútil; tudo foi feito de muito boas intenções, as tais, mas lá se foi por S. Paulo, Constantino e Lutero.
Agostinho da Silva, «Quinze princípios portugueses», “Espiral”, n.º 8-9 (Inverno de 1965)

terça-feira, junho 07, 2011

Pensamento mágico


Os europeus têm ainda o mesmo pensamento mágico que os faz ir a Fátima de joelhos para resolver problemas. Mas não quero reproduzir o tipo de preconceito que eles cometem quando falam sobre as coisas primitivas de África.
Mia Couto [Ler n.º 84, Outubro de 2009]

sábado, junho 04, 2011

Sem contra-indicações



A leitura, para mim, é talvez a droga mais saudável que existe. Traz-nos euforia, cria-nos dependência, mas o único risco que corremos é ampliar a nossa visão do mundo. E isso, que eu saiba, não tem contra-indicações.
Ana Margarida de Carvalho [Ler, 1996]

quarta-feira, junho 01, 2011

Em busca do essencial...






O problema do homem de hoje é ter o supérfluo, não tendo o essencial.
Fernanda de Castro, “Ao Fim da Memória I 1906 – 1939”

domingo, maio 29, 2011

Come!

Coimbra, 6 de Abril de 1943
VOZ
Era o céu que sorria nos seus olhos,
Eram junquilhos trémulos aos molhos,
As flores do rosto que eu beijava.
Fresca e gratuita como um hino à lua,
Nua,
Era um mundo de paz que se entregava.

Oh! perfume da Vida! – gritei eu.
Oh! seara de trigo por abrir,
Quem te fez todo o pão da minha fome?

Mas, os seus braços, longos e contentes,
Só responderam, quentes:

- Come.
Miguel Torga, “Diário II”

quarta-feira, maio 25, 2011

Construir um céu...

(...) a sua concepção de um Deus que só aparece a governar e a punir, de uma vida interior de perpétuo temor diante uma divindade implacável, o que permite que, ao mesmo tempo, os ritos percam todo o espírito que no princípio os animava e sejam apenas as secas cerimónias que nada significam no progresso espiritual do crente; é um Deus de sacrifício, de amor e de esperança o que pode manter sempre viva uma corrente religiosa, o que pode erguer o homem acima de si próprio, elevá-lo pelo esforço da alma, não o deixar cair no absoluto desespero ou na já indiferente, maquinal existência dos forçados que remam nas galeras; é um espírito que anima todo o Universo e que percebe no seu conjunto todo o fluir e refluir a que chamamos qualidade se defeitos, alegria e sofrimento; é um espírito que voluntariamente, num cato supremo da sua divindade, se limita para nos criar, para nos animar e a todo o mundo em volta, e limitando-se talvez mais para que possamos acompanhá-lo e sofrendo enquanto se limita, nos vem dar a certeza de que podemos salvar-nos, de que para lá de todos os tormentos a paz se clareai e de que toda a salvação depende do que tivermos feito na vida para apurarmos o que há de mais humano dentro de nós; é um Deus todo de compreensão, de inteligente entendimento das fraquezas e das quedas, sem que, no entanto, ele próprio se mostre fraco perante os hipócritas que impedem o reino, perante os fariseus que sabem a lei e não a cumprem; é um Deus que se compadece perante o sofrimento e oferece como exemplo a sua própria coragem perante o que teve de suportar para que a nossa salvação fosse possível; é, finalmente, um Deus que nos afirma, na enérgica brandura de todas as suas palavras, que podemos construir um céu, não subir a um céu, que poderemos esperar a realização na terra de uma sociedade fraterna e justa, em que talvez todo o sofrimento desapareça, em que talvez, ao fim da imensa jornada dolorosa, a humanidade possa, com serena inteligência, com profunda compreensão, contemplar o espectáculo admirável do mundo; não recuando perante o mal, dá-nos a esperança que haveremos de vencer.
Agostinho da Silva, “Vida de Miguel Ângelo”, Famalicão, Edição do Autor, 1942

sábado, fevereiro 19, 2011

São Guinefort

No século XIII, na região de Lyon, um galgo foi venerado com o nome de Santo Guinefort. Diz a lenda que o cão Guinefort foi incumbido de tomar conta de um bebé que dormia no berço. Uma serpente tentou atacar a criança e Guinefort matou-a. Quando o dono voltou e viu o cão coberto com o sangue da serpente, convenceu-se de que ele atacara a criança. Furioso, matou o fiel Guinefort e só depois viu o bebé são e salvo. Declarado mártir, o cão adquiriu o estatuto de santo, invocado para proteger crianças.
Alberto Manguel, “Deus, Dante e o Cão”

quarta-feira, fevereiro 16, 2011

Sionismo


E o que levou os judeus a fixarem-se, no seguimento da maior catástrofe da sua História, numa zona perigosa? Um professor judeu de Harvard disse-me recentemente: «Não seria de uma ironia horrível que os judeus se tivessem juntado, com toda a conveniência, num único país para um segundo Holocausto?» É um pensamento que por vezes passa pela cabeça dos judeus.
Saul Bellow, “Jerusalém, ida e volta”

quinta-feira, janeiro 13, 2011

Da Literatura

A verdadeira vida, a vida enfim descoberta e iluminada, e por consequência a única vida realmente vivida, é a literatura. Essa vida que, em certo sentido, habita a cada instante em todos os homens, tanto como no artista. Mas eles não a vêem porque não a procuram iluminá-la. E, por isso, o seu passado está atravancado de inúmeros instantâneos que permanecem inúteis porque a inteligência não os «revelou». A nossa vida – e também a vida de outros; porque o estilo para o escritor, tal como a cor para o pintor, é, não uma questão de técnica, mas de visão. Ele é a revelação, que seria impossível por processos directos e conscientes, da diferença qualitativa existe na maneira como nos surge o mundo, diferença que se não existisse a arte, ficaria sendo o segredo eterno de cada um. Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que a outra pessoa vê deste universo que não é o mesmo que o nosso, e cujas paisagens teriam permanecido para nós tão desconhecidas como as que poderão existir na Lua. Graças à arte, em lugar de vermos um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se e, quantos mais artistas originais houver, mais mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros que os que rolam no infinito e, que, muitos séculos depois de extinto o fogo donde emanavam, quer esse fogo se chamasse Rembrandt ou Vermeer, nos enviam ainda os seus raios próprios.
Este trabalho do artista, de procurar detectar algo de diferente debaixo das palavras, é exactamente o trabalho inverso daquele que, a cada minuto quando vivemos alheados de nós mesmos, o amor-próprio, a paixão, a inteligência, e também o hábito, realizam em nós, quando amontoam por cima das nossas impressões verdadeiras, para no-las ocultarem por completo, as nomenclaturas, os objectivos práticos a que falsamente chamamos vida. Só ela exprime para os outros, e a nós nos faz ver, a nossa própria vida, esse vida que não pode «observar-se», cujas aparências que observamos precisam de ser traduzidas e muitas vezes lidas às avessas e penosamente decifradas. É esse trabalho feito pelo nosso amor-próprio, pela nossa paixão, pelo nosso espírito de imitação, pela nossa inteligência abstracta. pelos nossos hábitos, é esse trabalho que a arte irá desfazer; é o caminho em sentido contrário, o caminho de retorno às profundidades, onde o que realmente existiu jaz desconhecido para nós, que ela nos levará a percorrer. E seria sem dúvida uma grande tentação recriar a verdadeira vida, rejuvenescer as impressões. Mas para isso seriam necessários vários tipos de coragens, incluindo a coragem sentimental. Porque equivaleria antes de mais nada a desistirmos das nossas mais caras ilusões, a deixarmos de acreditar na objectividade do que cada um de nós elaborou, e, em lugar de nos deixarmos embalar pela centésima vez por estas palavras: «Ela era muito simpática», lermos o que está por baixo: «Gostava de a beijar». É claro que o que eu experimentara nessas horas de amor, todos os homens o experimentaram também. Experimentamos, mas o que se experimentou é como certas fotografias que parecem negras enquanto as não pomos junto a um candeeiro e que, também elas, devem ser observadas às avessas; não sabemos do que se trata até o aproximarmos da inteligência. Só então, quando esta iluminou a experiência, quando a intelectualizou, distinguimos, e com alguma dificuldade, a figura do que sentimos.
Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido / O Tempo Reencontrado”

sexta-feira, janeiro 07, 2011

Do Alentejo

Maurice Maeterlinck:
- Reparei que ao logo das estradas nos saudavam frequentemente, que algumas vezes, por gestos, sentados à sombra dos sobreiros, nos convidavam a partilhar as suas refeições, que não hesitam em deixar os seus afazeres para indicar o caminho ao forasteiro e que são amáveis gratuitamente, sem a ideia oculta da gorjeta. Reparei também que um pastor me tirou o chapéu porque fiz uma travagem brusca para não atropelar o seu cão! Não, meus amigos, a civilização não está nas máquinas, nos arranha-céus, nos aviões; está na alma, na poesia, no sentido de Eternidade de um Povo.
Fernanda de Castro, “Ao Fim da Memória I 1906 – 1939”

domingo, janeiro 02, 2011

Da História


Trujillo, 9 de Junho de 1960 – A História que me perdoe, e Pizarro também, por escrever isto aos pés da sua estátua gloriosa, mas cada vez compreendo menos o herói guerreiro, o homem que força as portas da imortalidade a fio de espada. Com todos os penachos que ostente na cabeça de carne ou bronze, não passa a meus olhos dum assassino profissional laureado. Conquistou este mundo e o outro? Pior ainda. Na minha lógica pacifista, isso significa apenas que, em vez de uma calamidade local, foi uma calamidade universal.
Miguel Torga, “Diário IX”