sexta-feira, agosto 05, 2011

Velocidades


Coimbra, 26 de Junho de 1944 – Aflitiva a impaciência que começo a sentir nos comboios. Cada paragem, cada abrandamento de velocidade dão-me cabo dos nervos. Desespero-me por levar sete horas de Coimbra a Lisboa, quando eu sei que já foram precisos dias para percorrer tal trajecto. Mas não há História que me console. Ponho-me a pensar assim: nesse tempo a coisa era com cavalos, e uma solidariedade de suor, um limite muscular que a nossa própria animalidade media, ajudavam a respeitar o ritmo fisiológico do movimento. Rebentar montadas era um recurso extremo, que não se fazia sem dor. A espora que feria a ilharga tingia-se de sangue, mesmo que fosse de oiro. De maneira que o cilício que picava a besta picava o homem. Mas já que o progresso se riu da mula chocalheira e da diligência, então quero a mecânica a mil à hora, a velocidade levada até onde a corda der. Entregou-se o caminho não a cascos caseiros e familiares, mas a eixos de aço. Haja, por conseguinte, um chicote de lume a fazer voar as rodas.
E não será um sentimento idêntico ao meu que gera este delírio da velocidade, esta corrida cada vez mais desesperada do nosso tempo? Quebrou-se a amarra do navio; e os tripulantes, agora, o que querem é um vendaval que os leve o mais depressa possível a qualquer porto ou à morte.
Miguel Torga, “Diário III”

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