terça-feira, junho 19, 2018

da Poesia

Não é fácil nos dias de hoje, fazer poesia sentimental sem banalidade. Quase tudo o que havia a dizer já está dito. E o que é pior, dito e vencido. Entre o que se diz e a maneira por que se o faz, o verso foi resvalando para a técnica, e nela firmou seus domínios. A arte de escrever tem superado a mensagem, e a estrutura do verso preocupa mais do que a poesia a transmitir, e que pereceria a sua razão de ser. Já se vai tornando impossível tratar de poesia lírica, uma vez que a lira anda longe, substituída pelo compasso e esquadro. O verso tem adquirido ares de arquitectura, depois de ter passado por algumas confusões com a oratória. E como é tão célere o mundo, e as coisas naturais vão perecendo, e em breve não seremos mais criaturas humanas, mas coisas de humana aparência, funcionando entre outros maquinismos, falar em assuntos de sentimento já é quase arqueologia, porque não há tempo, não há lugar, não há ouvintes, não há razão de ser. (...)
Resta-nos, pois – a José Bruges e a todos nós, os da poesia sentimental – o trabalho de inventar o nosso mundo, e lá viver. Porque a poesia sentimental não é a poesia sentimentalista. Nós não andamos atrás dessas pequenas coisas dos amáveis sonhos de cada dia. Não, não, nós somos uns ambiciosos de coisas sem existência, pelas quais damos a vida, o corpo, a alma, o tempo, enfim, o que somos. E somos os amantes de uma liberdade que nos arranque a estes enredos da terra. E por ela choramos, e por ela nos convertemos em saudade. E isso é a nossa poesia.
Cecília Meireles, dactiloscrito anexo a carta datada de 12 de junho de 1951, envia da a José Bruges [“Acerca do Desterro – hermenêutica literária e arqueologia cultural” de José Rui Teixeira]

domingo, junho 17, 2018

as três pedrinhas


... virou para mim um olhar interrogativo: que estória é essa das pedrinhas, nunca ouvi falar, disse. Serafim é que conta, defendi-me cauteloso, ouvido do teu avô Frederico que diz ter ensinado a Pedro Trago esse método artesanal de conquistar as pequenas. Segundo ele Pedro já estava desesperado para namorar Dora e então Frederico explicou-lhe que quando um rapaz está interessado numa pequena e deseja saber se ela alinha na sua conversa, vai de manhã cedo à ourela do mar, antes do sol sair, e escolhe três pedrinhas redondas, duas pretas e uma branca. Embrulha-as bem embrulhado num lenço de mão branco e deixa-as um bom bocado debaixo do sovaco, até ficarem com o cheiro do corpo do seu dono. Depois arranja uma oportunidade de maneira a poder atirá-las uma a uma ao regaço da escolhida. Primeiro uma preta, depois a branca e a seguir a outra preta. Se em resposta ela devolver uma pedra preta, paciência, nada feito, quer dizer que não está interessada. Se ficar com elas brincando nas mãos sem devolver nenhuma, quer dizer que está a pensar no assunto, o outro tem é que esperar com calma porque nada está perdido. E se por boa sorte ela logo devolver a branca, não só está a dizer que está interessada como também que o namoro ficou firme desde aquele momento.
Germano Almeida, “A Família Trago”