sábado, dezembro 22, 2012

500 Torres Eiffel por dia


Todos os anos são consumidas dois mil milhões de toneladas de metal, sobretudo ferro (1,7 mil milhões de toneladas). O equivalente a 200 mil Torres Eiffel por ano! Ou seja, mais de 500 por dia. É como se cada francês consumisse 70 kg de metal por dia!
Agnès Rousseaux, sítio Bastamag

sábado, dezembro 15, 2012

Roupa para lavar


Como a tarde começava a refrescar, ela pôs-se a desdobrar a roupa que estava empilhada em camadas alternadas com cinzas e camas de folhas cozidas, que ela retirava com uma colher de pau.
- São precisas cinzas bem peneiradas, muito finas. Nada de carvão, claro: sarmentos, cascas e caruma de pinheiro. Para lavar. As ervas são o loureiro, o funcho, a hortelã verde e o limão cortado, que às vezes deixa umas marcas amarelas, mas não há nada melhor para desinfectar. Agora vou estender tudo isto na relva, por detrás das cameleiras. Hoje é noite de lua cheia que, para tirar as nódoas, é melhor do que o sol.
Suzanne Chantal, “Ervamoira”

quinta-feira, dezembro 06, 2012

A palavra e eu, apaixonadamente


Era minha amiga, íntima paca. Eu fazia o que queria com ela, pelo simples fato que deixava ela fazer o que queria comigo. Foi vindo e indo, a coisa. Um dia percebemos que estávamos apaixonados, a palavra e eu. Que eu podia procriar nela: e ela deixava. Era uma arma de fazer coisas quase indizíveis. Se chamava, acho, precisão. Juntos, ela e eu, nos colocamos a serviço das coisas tão essenciais, que nos doíam. Pelo supremo orgulho de ninguém nos entender e à nossa comunhão. E aí nos sentámos e escrevemos, com precisão científica, vendo como queríamos, como ía o mundo, no exato ponto ótico em que vivíamos...
Millôr Fernandes, “Flávia, cabeça, tronco e membros”

quarta-feira, dezembro 05, 2012

Tudo são homens


Vila Nova, 18 de Março de 1936 – «Cavam de sol a sol, comem um caldo, mas são felizes. Não têm preocupações...»
Ouço isto na cidade e meto-me no comboio, indignado. Que estupidez! Como se o problema da quadratura do círculo fosse maior do que o problema de saber se chove ou não chove no dia sementeira. Que vale um boi, no café? Em termos de pura dor – nada. Pois digo que nunca vi ninguém sofrer tanto como o meu vizinho a quem morreu um esta noite.
Sei a resposta: que quem sofre por uma ideia bebe, digamos, o sofrimento na sua forma mais pura.
Que me importa a mim! Tudo são homens. E ao cabo, ao cabo, tanto pesa uma arroba de terra, como uma arroba de filosofia.
Miguel Torga, “Diário I”

domingo, novembro 25, 2012

O português é um íncola degenerado.


«Carece de estrutura. Que é preciso para que o português tenha vida plasticamente sua e a viva com a indispensável autonomia e carácter? Antes de ir mais longe convém examinar porque é que o homem que para aí se vê não esteva à altura de se talhar um habitat próprio, digno de europeu, em território onde a existência, graças ao clima por via de regra benigno, em despeito das qualidades medíocres do solo, poderá ser fácil e fecunda. Se chamarmos a depor a história, a etnografia, a demografia e compulsarmos as estatísticas, chegaremos à conclusão que o português é um íncola em estado de esgotamento. Melhor: é um íncola degenerado. Como ocorreu tal catástrofe?» (...)
«O português é um íncola degenerado. Como ocorreu tal catástrofe? As causas foram várias e fazer a sua etiologia seria tarefa laboriosa e demorada. Assentemos, desde já, nesta facto incontroverso, que não tem anos, mas séculos, e não precisa de demonstração: a maioria dos portugueses tem fome. Não se melindrem os ouvidos de Vossências com o juízo calamitoso e pronunciem acentuando bem as sílabas, que soltam por cima do charco um grito de alarme: a maioria dos portugueses tem fome! O operário urbano não ganha com que se alimentar suficientemente e alimentar a prole, e o mesmo sucede ao cavador, ao pequeno proprietário, se anda em dia com o Estado e o ricouço, e ao mediocrata da classe liberal – quatro grupos estes que representam a maioria da nação. Portanto, primeiro que tudo, há que matar a fome do habitante, regenerando a planta humana raquítica, enfezada, de mau semental e mau fruto. O problema que consiste torná-lo animal civilizado, mercê de sabenças, serviços públicos grátis e tudo o mais que constitui o crisol dos Estados, é secundário. A tudo prima ter de comer à farta e moradia higiénica e saudável. Para isso temos de expropriar os grandes meios de produção, dividir a terra arável para quem seja capaz de granjeá-la pelo seu braço e cultivar manu militari, se tanto for preciso, a terra baldia. Está provado que não há solo bom nem solo mau. Há solo adaptado ou inadaptado à cultura. Por outros termos, a terra em si não conta; o que conta é o húmus, e esse depende exclusivamente da preparação química a que é sujeito. A terra não é mais do que o meio em que estão depositados os princípios de que se nutre a planta, como o mar é fiel comissário, digamos, do plâncton de que se alimenta a fauna marinha.» (...)
«Com resolver o problema da terra, repartindo esta e aproveitando aquela de modo mais eficaz, teremos tocado noutro, não menos fundamental: o problema biológico da raça. A aldeia é a célula do agregado social. Aí se renova e tempera o capital humano. Toda a obra de regeneração tem de começar por ali. Ora a célula lusitana, além de pobre, gasta, enfermiça, é de natureza compósita; compósita de godo, de romano, de berbere, de cafre, que sei eu? Tem o defeito dos híbridos: falta de carácter. O que por aí ficou é o rebotalho. O rebotalho de muitas raças escumadas pela guerra. O invasor chegava e tratava de exterminar: primeiro quem lhe resistia; depois quem o contrariava em sua vontade discricionária e lhe disputava a fêmea. Para que o intruso gozasse da conquista, havia que proceder à eliminação do mais nobre, do mais forte, do mais varonil. Deste modo ninguém lhe contestaria a posse da terra, da casa e da mulher, em geral as três ambições do homem que fazia a guerra. Assim deve ter sucedido com a colonização romana, depois com a invasão dos bárbaros do Norte e não menos com a ocupação árabe. Destas três vagas, não falando de outras mais ou menos ante-históricas, subsistiu o que não teve ânimo para renhir ou emigrar, o débil e o tíbio, numa palavra. A selecção faz-se às avessas: perdurou o reles. Imagine-se agora que espécie de capital humano ficou desta filtragem malfazeja? O saloio que por aí se vê, insusceptível de progresso, inimigo da árvore, preguiçoso, sem ideal, sem beleza, é o exemplo eloquente. Compreende-se que a faixa de terra lusitana, delimitada a todo o longo pelo mar, fosse como o paredão onde vieram esbarrar e quebrar-se as hordas migratórias, inflectindo para a África a parte vigorosa e aventureira, agarrando-se ao chão o contingente de cansados, doentes, combalidos, que devia ser o mais numeroso. Da população autóctone, rarefacta em menos de doze séculos, no sentido do pior, uma três ou quatro vezes cruzada com os dejectos humanos doutras tantas invasões, saiu o português, que teve ainda a infelicidade de ser joeirado do melhor pela aventura dos descobrimentos e das conquistas do século XVI. Não nos iludamos nem tenhamos vergonha de o proclamar, pois os sucessos da nação se sobrepõem à veleidade do indivíduo: somos uma espécie compósita, heteróclita, ainda não decantada no que muitas raças tinham de pior, miuçalha, em suma.» (...)
«É preciso melhorar as condições, quer físicas quer morais, da existência do camponês. O camponês, além do resto, é o reprodutor por excelência. Como pode a raça ter saúde e beleza se estão viciadas as fontes da vida? A aldeia portuguesa é uma pocilga e os moradores chusma heterogénea de loucos, aleijados, enfermos, em decrescimento o quociente dos fortes e bem conformados. Não há localidade, por mais pequena que seja, que não tenha o seu jogral, que o é por direito de mentecapto, os seus estropiados e os seus mendigos. Estes têm a liberdade de cruzar-se a seu bel-prazer. Não é raro que um leproso case com mulher sã; não é menos frequente que um nascituro aleijado, mas o que se chama aleijado por defeito congénito de pai ou mãe, se siga outro nascituro nas mesmas condições, e, quando tudo aconselhava que se parasse a obra nefanda de atirar ao mundo com lázaros, a veia, fecunda posto que corrompida, continue a produzir, e sejam vários os monstros saídos do contubérnio derrancado. Há que instaurar com foros de lei coerciva e reguladora o eugenismo se se quer salvar a raça ou variedade peninsular que se convencionou chamar de lusitana, começando desde já a depurá-la, proibindo os casamentos consanguíneos, os casamentos entre indivíduos com tara ou tendência mórbida, indo até à esterilização. Em paládio dos miseráveis arvorou-se a Igreja desde sempre. É a sua grei por excelência. A miséria humana é-lhe tão sensível como o adubo às rosas. É o primeiro embaraço que se há-de encontrar no caminho da renovação que preconizamos. Além disso tudo, há que formar o cérebro do camponês de modo a que tenha dignidade humana; que se esqueça de que foi escravo; que tenha gosto em viver; que odeia a morte e que a morte lhe não seja refrigério. Tenho nos ouvidos a súplica da aldeã que morava à porta da minha casa paterna. Sempre que havia óbitos na povoação ou arredores, rompia nesta choradeira: Porque não se lembra a morte de mim? Para que o camponês seja gente, temos ainda que libertá-lo das garras do Fisco e da burocracia da vila que é a sua sanguessuga danada e, como o agro português é pobre, dar-lhe aquilo que seria barato, que constituiria a nossa alimentação abundante e sadia se houvesse método, consciência, visão económica: peixe. Os mares que banham as costas portuguesas estão a abarrotar de peixe. Porque não o pescam? Entre muitas razões por incúria, repugnância em explorar o que, tendo embora valor, não acarreta lucros explosivos, espírito de rapacidade de certos indivíduos ou grupos financeiros. Há portanto que a imensa ucharia. À falta de melhor ponha-se a Marinha de Guerra, a nossa briosa Armada, a pescar a sardinha e o carapau de modo a que o faminto do Saojo, do Jarmelo, da Gralheira tire o ventre de misérias.» (...)
«Aqui há tanto de doutrina fisiocrática como das leis de Licurgo ou dos preceitos do Deuteronómio. E não há menos do padre-nosso: o pão de cada dia nos dai hoje... Eu quero a terra explorada cientificamente a bem da comunidade. O português, mutatis mutantis, cultiva a terra como se fazia nos tempos do rei Vamba. Quanto ao mar, que ainda não foi dividido em courelas, belgas, herdades como o solo, e grande deve ter sido a pena do irmão burguês, quero que se torne o manancial da fartura dum povo esfomeado, que seja dalgum modo o que foi para os israelitas o solo pingue da Palestina, que transformou esses vagabundos do deserto, só pele, osso e cobiça, em habitantes sedentários, satisfeitos com a vida, criando arte, constituindo uma personalidade. É muito pedir? Então o oceano não há-de dar mais que duas sardinhas, uma que vai podre para o estrangeiro nas latas de conserva, outra que chega corchada, ardida, ou amarela da salmoira, à aldeia das serras? A seara portuguesa não há-de produzir mais que dez sementes e no pomar só hão-de amadurar pomos bichosos? A minha linguagem indignada, estou na ver, presta-se ao riso, mas nem por isso deixa de me assistir uma inexorável justiça. reformemos, reformemos, reformemos. Reformemos antes de mais nada o português físico, atacando o mal originário. É um triste. Reformemos, depois, o homem colono, ensinando-lhe a cultivar a terra e dando-lha. Reformemos ainda o homem social, ensinando-o a viver. Meteram-no mesma camisa do bicho que nasce dos Pirenéus para lá. Desde a escola tem o calcorrear do francês: o mesmo ensino, os mesmos processos, a mesma norma; depois, os mesmos deveres para com o Estado, o mesmo serviço militar, as mesmas leis de família, os mesmos lugares-comuns obrigacionais para com a sociedade, a pátria, a Igreja. Acaso o cérebro do português requer semelhante decalque? Não, três vezes não. O português, se descermos para o vulgo, é essencialmente mecanista. Não lhe peçam trabalhos de reflexão ou que exijam uma grande retentiva do espírito. Mas prima em tudo o que seja manual e obra de confecção. Como operário é um excelente ensamblador, admirável escultor de talha, pedreiro, operário de manufactura. Em contraposição é avesso a tudo que implique faculdade criadora. A educação do português tem de ser orientada no sentido do seu génio. Quanto ao espiritual de que deva impregnar-se a sua formação em harmonia com a índole, é de recomendar a reserva mais circunspecta. Em verdade, ficou no território a enxurrada de muitas raças, as quais professam religiões diferentes em seu credo e no conceito que tinham do mundo e seus fenómenos. Ficou uma vasa mística, viveiro prodigioso de rãs caoxando ao céu. Que havia a esperar de consciências religiosas mestiças se não inaptitude para o mistério e a contemplação, e daí incapacidade da verdadeira fé? Em algumas províncias e regiões o culto reduz-se a práticas externas em que se sentem enxertias estranhas, tais as províncias do Sul e o hinterland saloio. No Norte, druídico ou perdurantemente panteísta, não se invocam ainda, a par de Santa Bárbara e S. Jerónimo, os santos Deuses Imortais?! As religiões foram sempre um pormenor na vida do português, proselitista por conveniência comercial e política, mas sem entranhado alor da crença e abnegação do espírito. Que obras de idealidade verdadeiramente colectiva oferece a arte da nossa terra? Batalha e Jerónimos são obras do poder real gizadas por estrangeiros. Do povo são as capelinhas pelos montes, simples e ingénuas como larários a Adónis. As catedrais foram edificadas, não raras vezes, com as pedras das mesquitas, para atestar a vitória do cristão, ou erguidas por indústria do prelado ostentoso. Também não se sente na história da nacionalidade e sua projecção no mundo alma construtiva, irradiadora. A religião, sob este aspecto, é o pálio que vem esperar o vizo-rei e a missa que congrega a soldadesca na feitoria ou pagode avassalado. Nada de dentro. Santo António e Santa Isabel rainha são santos de pura exterioridade. S. Gonçalo consagra os antigos mitos fálicos. O português é refractário à adoração no que teve de místico e agora tem de eucarístico. Supor, porque houve o escudo de Cristo nas caravelas, que era visceralmente devoto e que toda a restauração em si, na sua personalidade, tenha de passar pelos Syllabus, errôneo.»
Aquilino Ribeiro, “O Arcanjo Negro”

domingo, novembro 18, 2012

O especialista


O especialista é um homem que tem a opinião dos outros, embora sobre um só assumpto. O especialista é incapaz de iniciativa. Por isso os especialistas são muitos e felizes. [71A-61]
Fernando Pessoa, “Prosa de Álvaro de Campos”

quarta-feira, novembro 14, 2012

Solidaritaet


No seu livro intitulado “Colapso: ascensão e queda das sociedades humanas” (Gradiva, 2008), o biólogo Jared Diamond refere, entre as razões pelas quais as civilizações antigas morreram, a incapacidade das elites e dos governos respetivos para compreenderem o processo de desmoronamento em curso ou, quando tomaram consciência dele, a incapacidade de o evitar, devido a uma atitude de defesa “de curto prazo” dos seus privilégios. Arnold J. Toynbee, ilustre filósofo da História, advertiu: “As civilizações morrem assassinadas, suicidam-se”. Só nos resta desejar que não seja simplesmente a isso que estamos a assistir.
Paul Jorion, Le Monde, 08.10.2012 [Courrier Internacional, n.º 201, Novembro 2012]

quarta-feira, outubro 31, 2012

Obra de muita gente...


se eu me for embora, se eu parar, se eu morrer, ou desaparecer, há gente aqui, neste Partido, que é capaz de andar com ele para a frente. Porque um homem que fez uma obra que só ele é capaz de continuar ainda não fez nada. Uma obra vale, na medida que é obra de muita gente.
Amílcar Cabral, “Nacionalismo e Cultura”

sexta-feira, outubro 26, 2012

ibérico + sefardita + berbere


Na Península Ibérica, em média, os homens apresentam 69,6% de ascendência ibérica («nativa»), 19,8% sefardita e 10,6% berbere. No Norte de Portugal, essas proporções são, respectivamente, de 64,7%, 23,6% e 11,8%; no Sul, de 47,6%, 36,3% e 16,1%
Rui Ramos (Coordenador), Nuno Gonçalo Monteiro, Bernardo Vasconcelos e Sousa, “História de Portugal”

sábado, outubro 13, 2012

Lagarada


meia-noite no lagar.
De aí a nada, arregaçados, os homens iam esmagando os cachos, num movimento em que havia qualquer coisa de coito, de quente e sensual violação. Doirados, negros, roxos, amarelos, azuis, os bagos eram acenos de olhos lascivos numa cama de amor. E como falos gigantescos, as pernas dos pisadores rasgavam máscula e carinhosamente a virgindade túmida e feminina das uvas. A princípio, a pele branca das coxas, lisa e morna, deixava escorrer os salpicos de mosto sem se tingir. Mas com a continuação ia tomando a cor roxa, cada vez mais carregada, do moreno, do sousão, da tinta-carvalha, da touriga e do bastardo.
A primeira violação tirava apenas a cada tacho a flor de uma integridade fechada. Era o corte. Depois, os êmbolos iam mais fundo, rasgavam mais, esmagavam com redobrada sensualidade, e o mosto ensanguentava-se e cobria-se de uma espuma leve de volúpia.
Miguel Torga, “Vindima” (1945)

terça-feira, outubro 02, 2012

Azémola!


Azémola de moleiro, com mais manha que o amo, para avançar havia de escolher o piso, ladeando os desníveis do terreno, e porfiando a todo o transe na verdade matemática de que mais segura que a recta é a linha curva.
E se eu tinha descuido em tangê-la, ternamente se ensimesmava em contemplação, detendo-se de orelhas em riste para um campo que verdejasse, ou pondo-se a tosar os jactos de junquilhos, que a mão graciosa do Criador plantara pelos andurriais para os nossos humildes irmãos, segundo a lírica franciscana. Outras vezes, suspendia-se a calcular a operação duma subida, até que eu incentivasse com um irosíssimo: anda, azémola do demo!
Aquilino Ribeiro, “A Via Sinuosa”

quarta-feira, setembro 19, 2012

O gosto de ser livre...


Argel, 14 de Setembro de 1953 – As duas bofetadas que um polícia francês acaba de dar na minha frente a um nativo vagabundo hão-de custar caro à França. Até me pareceu ver o céu claro da Argélia abrir-se ligeiramente, e Maomé tomar nota do caso no seu canhenho de represálias.
Este cartesianismo europeu não se convence de que toda a forma de colonialismo é imoral, seja ela a mais progressiva materialmente e a mais codificada socialmente. De que à universal e tentacular presença civilizadora do cristianismo falta sempre um dos lados do diálogo: a opinião do indígena. Que pensa ele do benefício? Que disse o Inca no Peru, o Asteca no México, o Negro em Angola? Que diz o Árabe, aqui? Interessa-lhe mais a penitência da Cruz, ou a volúpia do Crescente? Prefere ver as formas, ou adivinhá-las? Claramente que nunca passou pela cabeça dos apóstolos fazer a pergunta. Armados até aos dentes e senhores duma técnica manual e mental demoníaca, julgam ocioso fazê-la. Mas todo o submetido responde, mais cedo ou mais tarde, mesmo sem ser interrogado. Embora a séculos da agressão, os Incas estão a responder, e os Astecas também, e os Negros também. E não me parece que o mundo islâmico se cale, túrgido como o vejo, com todas as energias represadas nas dobras do albornoz.
Na voz salmodiada dos velhos muezins, que desce dos minaretes e repercute multiplicada e rejuvenescida nas gargantas adolescentes, no silêncio duma casbá onde a alma forasteira penetra como lâmina em bainha sem fundo, no bulício das feiras que a miséria circunda dum halo de comício, o espírito ocidental suspicaz surpreende a orça incoercível duma religião a que já nada de autêntico temos a opor, e o ódio de uma vontade humana que nunca se concebeu esmagada. Mais do que o poder dos engenhos de repressão, do que as seduções dum progresso que atropela as essências, vale a obstinação dum versículo que se estampa nos olhos, depois de ser carícia nos lábios e friso caligráfico nas mesquitas. E mais ainda do que ele, vale a liberdade. O gosto de ser livre diante do próprio deus.
Miguel Torga, “Diário VII”

sexta-feira, setembro 07, 2012

Sobre a tradução


- O que há de poético na obra de Cervantes – observei, como se estivesse a fazer uma conferência – é quase intransmissível noutra língua. Trata-se, de resto, de um fenómeno literário que abrange qualquer género de grande poesia e de determinado tipo de prosa. Não quer dizer que devemos ignorar Kafka por não saber checo, mas há autores que constroem o clima com a própria língua e existe uma grande desvalorização na passagem para outro idioma. Ler James Joyce sem ser na língua original é perder trinta por cento nas entrelinhas. Ler Rimbaud é como perder qualquer coisa como cinquenta por cento.
Dennis McShade, “Requiem para D. Quixote”

sexta-feira, agosto 31, 2012

Ao escrever...


Ao escrever, e independentemente do valor do que escrevo, tenho às vezes a vaga consciência que contribuo, embora modestamente, para o aperfeiçoamento desta terra onde um dia nasci para nela morrer um dia para sempre.
Ruy Belo, “Breve Programa para Uma Iniciação ao Canto – Transporte no Tempo” (1973)

segunda-feira, agosto 27, 2012

Há 40 anos, Allende...


Estamos a assistir a um conflito frontal entre as grandes empresas transnacionais e os Estados. Estes últimos vêem-se parasitados nas suas decisões essenciais, políticas, militares, económicas, por organizações mundiais que não dependem de nenhum Estado e não respondem pelos seus actos perante nenhum Parlamento nem perante nenhuma instituição que seja garante do interesse colectivo. Numa palavra, é toda a estrutura política do mundo que está a ser minada.
Salvador Allende, no discurso que pronunciou na Assembleia Geral das Nações Unidas em 4 de Dezembro de 1972

quinta-feira, agosto 23, 2012

Como os livros chegam até nós...


De vez em quando, faço um pequeno exercício. Levanto-me do sofá, olho para as estantes da sala e tento lembrar-me do que me levou até um determinado livro, ou do que o trouxe até mim. Há romances enviados pelas editoras; volumes de poesia comprados em livraria independentes (algumas já falidas); literatura estrangeira que chegou um dia pelo correio, embrulhada no cartão da Amazon. Mas o que me levou concretamente a escolher aquela obra, aquele autor? Na maior parte dos casos, a resposta é óbvia. Escolhi-os porque sim. Porque um clássico é um clássico. Porque dos escritores preferidos queremos sempre a obra completa. Porque alguém nos diz à mesa do café: «Tens mesmo de ler isto.» Mas também há livros que não sei de onde vieram, por que raio acabaram cá em casa, no meio dos outros. Alguém mos emprestou? Não faço ideia. Quando dou por eles, têm o ar comprometido dos passageiros clandestinos.
José Mário Silva, “Ler – Livros e Leitores” n.º 114, Junho 2012

domingo, agosto 19, 2012

Mariposo


«Quando o mariposo lavrar quarenta pousadas e colher um carro de milho e três rasas de feijão, que é o comum para a matença de uma pessoa que tem os dentes todos, e der à tosquia dez ovelhas, que lhe dêem lã para uma capucha e dois pares de coturnos, que te venha buscar. Antes, nem num andor.»
Aquilino Ribeiro, “Volfrâmio”

sábado, agosto 11, 2012

Do camponês


Coimbra, 12 de Dezembro de 1949 – Encaixar o insucesso e retomar a rabiça com redobrada energia – eis a grande força e a grande lição do camponês. A vida para ele não é tanto colher, como semear. A lançar à terra energia viva, sonho sem joio, é que a sua humanidade se justifica. O resto é com os elementos, que ora cobrem a seara da bênção dum sol fecundante, ora a percorrem na estúpida fúria da destruição.
Miguel Torga, “Diário V”

sábado, julho 28, 2012

Jagudi


O jagudi é uma ave curiosa. A parecer feita de várias outras aves. Bico recurvado de papagaio. Olhos vivos de falcão. Cabeça de galo a que amputaram a crista. Pescoço enrugado de peru em véspera de Natal. Corpo avantajado de avestruz, de penas sem brilho e de cor indefinida. Pernilongo como um flamingo, mas com aceradas garras de águia imperial. Anda no chão como se fosse um marinheiro nunca vindo a terra. Em contrapartida, na Guiné é rei dos céus, onde paira, elegante, especialmente enquanto o sol não transforma a manhã amena no inferno do meio-dia. É o mais eficiente dos funcionários municipais. Ocupa-se da limpeza da via pública e não há ponta de lixo que não atraia a sua visão de excepção. Lixo por ele removido, diligentemente, e levado para o ninho, dando às ruas e jardins o ar asseado da manhã.
Magalhães Pinto, “Os Heróis e o Medo”

sábado, julho 14, 2012

O vinho dos deuses





Com um gesto lento, virou o copo e deitou as últimas gotas de vinho na terra seca, que as bebeu avidamente. Era o gesto antigo para aplacar os deuses, e que no o Douro ninguém ousava esquecer nas noites ameaçadoras, quando o céu obscurecia por cima dos vinhedos.
Suzanne Chantal, “Ervamoira”

sábado, junho 30, 2012

Diz o antropólogo ao economista


Aquilo que o antropólogo recorda ao economista, caso ele venha a esquecê-lo, é que o homem não é pura e simplesmente incitado a produzir cada vez mais. Ele procura também, no trabalho, satisfazer aspirações que estão enraizadas na sua natureza profunda: realizar-se como indivíduo.
Claude Lévi-Strauss (1980-2009), “A Antropologia face aos Problemas do Mundo Moderno”

domingo, junho 17, 2012

Pena leve

O curioso – e peço-lhe que não veja no que vou dizer alusão à sua pessoa – é que não há ninguém que se não julgue habilitado a manejar a pena. Porquê? Tenho-me perguntado muitas vezes. Provavelmente devido ao pouco peso do objecto e ainda à passividade do papel em branco. Não será isso? Admito também que se escrevam cartas à prima, cartas que a deixem babadinha de todo, e que resulte daí, para quem as escreve, bem entendido, não parecer milagre nenhum compor a Arte de Amar, de Ovídio.
Aquilino Ribeiro, “Lápides Partidas”

quinta-feira, junho 07, 2012

Altar de Cabrões

Altar de Cabrões, 9 de Agosto de 1944 – Estou a mil e quinhentos e trinta e seis metros, perto do céu, a ver o Barroso, o Marão, a Peneda, a serra Amarela e o Lindoso. Estou sentado num marco que separa Portugal de Espanha, mas o sítio chama-se Altar de Cabrões e foi, como se vê, o olimpo de majestades cornudas, a ara de alguns daqueles sagrados deuses lusitanos, de que só restam nomes e cascos. Cada vez sei menos de rezas e de santos. Mas quando pressinto pegada de velho Endovélico, tenho logo vontade de me prosternar e benzer. O catolicismo, sem o Cristo querer, encheu este mundo de cruzes e água benta. Ora estes nossos patrícios deuses de chifres eram portadores de uma virilidade mágica, que não nega nem degrada a natureza. Nada de agonias lentas em madeiros de cedro. Água, frutos, sol, e uma divindade fundamentada na verdade feiticeira das coisas.
Miguel Torga, “Diário III”

sábado, junho 02, 2012

Tripeiros


Os naturais do Porto são conhecidos por “tripeiros”, designação que se deve ao sacrifício que fizeram para apoiar a preparação da armada para a conquista de Ceuta em 1415. Diz-se que ofereceram aos expedicionários toda a carne disponível ficando apenas com as tripas.
Suzanne Chantal, “Ervamoira”

sábado, maio 19, 2012

Libertar o oprimido e o opressor


Foi durante esses anos longos e solitários que a minha ânsia de liberdade para o meu povo se dilatou numa ânsia de liberdade para todos, brancos e negros. Estava ciente de que o opressor precisava tanto de ser liberto como o oprimido. Um homem que rouba a liberdade a outro homem é um prisioneiro do ódio, está trancado atrás das grades do preconceito e da estreiteza mental. Ninguém é totalmente livre quando rouba a liberdade de outrem, do mesmo modo que não é livre aquele a quem tiram a liberdade. (...) Quando saí da prisão, era essa a minha missão, a de libertar o oprimido e o opressor. Há quem diga que já foi conseguido. Mas sei que não é assim. Na verdade, ainda não somos realmente livres, apenas alcançamos a liberdade de sermos livres, o direito de não sofrer a opressão. Não demos o último passo do nosso percurso, apenas o primeiro de um caminho mais longo e ainda mais penoso. Porque ser livre não é apenas quebrar as correntes, mas viver uma vida que respeite e estimule a liberdade dos outros. O verdadeiro teste da nossa dedicação à liberdade ainda mal começou. Tenho vindo a trilhar esse longo caminho para a liberdade. Procurei não vacilar, embora ao longo do percurso tenha dado passos em falso. Mas descobri que depois de subirmos uma montanha percebemos que continua a haver muitas montanhas por transpor. Aproveito o momento para descansar, apreciar a vista esplendorosa que me rodeia, para olhar para trás, a contemplar o caminho já percorrido. Mas só posso descansar por um momento, pois a liberdade traz consigo responsabilidades e não me atrevo a parar, pois o meu longo caminho ainda não terminou.
Nelson Mandela, “Um Longo Caminho para a Liberdade”

domingo, abril 01, 2012

Ironias da história

Lembramo-nos da amargura irónica com que certo chefe mandinga, referindo-se a si mesmo, falava dos seus dez anos de estudos corânicos, do seu perfeito conhecimento da escrita árabe, da sua formação teológica islâmica e do facto de, apesar de tudo isso, ser oficialmente considerado analfabeto.
António de Spínola, “Portugal e o Futuro” (1974)

domingo, março 11, 2012

O mercado global

Árvores cor de canela, fruta dourada.
Mãos acaju embrulham as sementes brancas em grandes folhas verdes.
As sementes fermentam ao sol. Depois, uma vez desembrulhadas, ao ar livre, o sol seca-as e, lentamente, vai-lhes dando uma cor acobreada.
O cacau enceta então a sua viagem sobre o mar azul.
Para passar das mãos que o cultivam às bocas que o comem, o cacau é submetido a tratamento nas fábricas das Cadbury, Mars, Nestlé ou Hershey, e depois é posto à venda nos supermercados do mundo: por cada dólar que entra na caixa, chegam três centavos e meio às aldeias de onde vem o cacau.
Richard Swift, um jornalista de Toronto, deslocou-se ao Gana, a uma dessas aldeias.
Visitou as plantações.
Quando se sentou para descansar, tirou do bolso umas barras de chocolate e antes mesmo de poder dar uma trincadela, uma multidão de crianças curiosas rodeou-o.
Nunca tinham provado. Gostaram muito.
Eduardo Galeano, “Les Voix du temps”, Lux, Montreal, 2011 – tradução de Júlio Henriques [Le Monde Diplomatique – edição portuguesa n.º 62, Dezembro 2011]

sábado, março 03, 2012

A gente destas paragens é oriunda da Negrícia...

Aguentei-me à banca de escritor com insuperável teimosia. Maniacamente insatisfeito. Tão bem como um sorriso de mulher, um período a compor fazia-me perder dias inteiros. E para quê? Portugal é terra boa para vinho e cebola, sáfara para as letras. Não enchem o alforge de quem as cultiva. Depois, trabalhar no idioma português pouco mais é que escrever na areia. O escritor fica a apodrecer dentro dele como no ataúde. Para outros domínios não se rompe. Qualquer literato, francês ou alemão, de segunda e terceira plana, adquire com uma perna às costas fama mundial. A mercadoria intelectual portuguesa, ainda a de primeira qualidade, é inexportável. E, antes de mais nada, é sensato que se pergunte: existe?
Como uma língua bunda na generalidade, batida apenas na pregação e no verso; difusa e exuberante no concreto; falha de todo o abstracto; sem matizes nem finuras, feitas por mareantes e cavadores, absorvidos na pobre vida material, e alguns latinizantes, trabalhadores ao torno; com uma língua que é difícil pensar acertado e escrever com graça, retorcida por frades, moços-fidalgos e gente de libré; com uma língua que foge da pena como a greda das mãos experimentadas, abastardada pela francesia – não é lícito perguntar se existe? O facto é que a literatura portuguesa não se exibe, por virtude intrínseca, nos escaparates internacionais e é por fineza que ocupa tal e tal estante nas bibliotecas e sinédrios estrangeiros. Quem atribui a Camões ou Eça voga cosmopolita é cafre ou julga que está a falar para cafres puros.
Em Portugal nunca houve o ofício das letras. A dignidade que confere o trabalho útil e lucrativo, este prestígio, sorte de heráldica, que vinca os mesteres de utilidade pública, desconhecem-nos as letras pátrias. Encontram-se amadores a dar com um pau, profissionais genuínos poucos. A razão é que nunca existiu entre nós necessidade de literatura. Sentiu-se a necessidade de chitas e improvisaram-se teares; de cimento e já se fabrica; de assobios para chamar o guarda e de palitos para palitar os dentes, e os utilíssimos artigos contam no país muitas e poderosas manufacturas. Logicamente, a literatura bruxeleia, a cargo de meia dúzia de curiosos, como a indústria dos tapetes de Arraiolos e das rendas de Peniche. Escrever para quê? O escritor nacional carece até do incentivo da dificuldade e do espírito de emulação. Não igualmente todos brilhantes, ilustres, gloriosos? Compreende-se a interestatuficação: «A gente destas paragens – escrevia um embaixador teutónico – é oriunda da Negrícia; por fora, boa maioria é mulata; por dentro, deve ser toda ébano retinto». Neste sector, estou repleto; nada mais tenho a desejar. Sou glória nacional desde Olhão a Valença.
Aquilino Ribeiro, “Maria Benigna”

quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Artífices


O tempo em S. Cristóvão anda devagar. As terras são cascalho puro, de maneira que é preciso dar prazo às raízes para roerem o granito até fazerem de uma areia um grão de cevada ou de centeio. Um ano, ali, são trezentos e sessenta e cinco dias bem medidos. E as pessoas que lá moram, afeitas a horas longas, têm uma paciência de relojoeiro, cheia de mil cálculos e de mil ponderações. Exactamente como nas leiras, onde a gente vê semanas a fio o mesmo pé de milho parado, meditativo, enigmático, a aloirar encobertamente a sua espiga, assim nos homens mais pasmados, mais lentos e mais metidos consigo, anda às vezes uma resolução secreta a criar e a amadurecer. E saem obras tão perfeitas destas meditações, tão acabadas na concepção e na forma, que só o dedo da providência, porque aponta do céu, é capaz de lhe evidenciar os defeitos de fabrico. Mas mesmo assim são às vezes precisos anos para que Deus descubra a fenda do cântaro. Tal é a perfeição dos artífices de S. Cristovão!
Miguel Torga, conto “Teia de Aranha” in “Novos Contos da Montanha” (1944)

domingo, fevereiro 19, 2012

Dia do Comerciante

Os industriais e os comerciantes sempre foram muito bons a fazer reverter em seu benefício os nossos sentimentos. Habilmente, dirigem as suas campanhas para os momentos críticos do ano, a cuja mitificação ajudam com entusiasmo. Quem comemorava em Portugal, aqui há dez anos, o 14 de Fevereiro, dito Dia dos namorados ou de São Valentim? Era coisa tão nossa como o kilt dos escoceses ou o boomerang dos indígenas da Austrália. Então, alguém se lembrou que o natural desejo de obsequiar o namorado ou a namorada podia converter-se num negócio chorudo, e toca a convencer-nos de que São Valentim tinha nascido ali em Escalos de Baixo e era, pois, portuguesinho de gema. Entendem o que eu quero dizer, suponho.
Depois é o Dia da Mãe, o Dia do Pai, o dia de tudo e mais alguma coisa que possa ser convertido em notas de banco nas caixas registadoras. E nós, que vivemos alegremente nesta sociedade de consumo, vamos comemorando os diferentes dias, os quais perdem gradualmente o seu significado original para se tornarem apenas em dias de dar prendas. Isto é: o Dia do Pai, o Dia da Mãe, o Dia dos Namorados e tutti quanti transformaram-se em Dias do Comerciante todos eles. E nós a ver! E nós a colaborar!» 
A. M. Pires Cabral “Na Província Neva (Crónicas de Natal)”, 1997

domingo, fevereiro 12, 2012

Sê atrevido!


Sê atrevido — e levanta, nem que seja só em imaginação, a tua própria árvore, nos sítios mais inesperados. E principalmente que ela atravanque tudo, suspenda a lufa-lufa dos negócios, se oponha, escandalosa, aos frenéticos automobilistas e os obrigue a fazer grandes desvios, para não baterem nela e nela acabarem por apodrecer encaixotados, como pobres mortais que são!
Alexandre O'Neill, “Já cá não está quem falou” (Assírio & Alvim, 2008)

domingo, fevereiro 05, 2012

Namoro a preto-e-branco

Vai, Meu Amor
(...)
Eu comprei um chapéu branco
Para namorar de dia,
E o chapéu branco rompeu-se,
E eu namorar não sabia.

Eu comprei um chapéu preto
Para namorar de noite,
O chapéu preto rompeu-se,
E o namorar acabou-se.
Salvador Parente “Cancioneiro Transmontano | I – Cantigas de Roda”, Cadernos Culturais, 2.ª Série, n.º 6, Vila Real, 1989

domingo, janeiro 29, 2012

Basta!


Os portugueses estão no topo da depressão – mas não têm a eficiência do suicídio ao ritmo nórdico. Nem é com mais meia hora de trabalho por dia que o povo fica com o design finlandês: desenganem-se, escuteirinhos da Alemanha. Portugal é demasiado velho para se tornar um puto neoliberal carregado do pestilento acne do individualismo triunfante. Já nem na América se usa este ambiente de bordel sem luxúria.
Inês Pedrosa, “Ler – Livros & Leitores” n.º 108 Dezembro 2011

domingo, janeiro 22, 2012

Bicho-homem

Decerto o bicho-homem é da omnímoda criação o ser que menos interesse reveste quando colhido em abandono, isto é, esquecido de si e dos outros. O lobo que vai no seu caminho denota uma exuberância de força e elasticidade que fariam a glória de um atleta olímpico; o asno que chouta livremente pelo caminho fora, indolente e devaneador, detendo-se aqui a colher uma febra de erva, suspendendo-se além na vaga consideração de qualquer coisa que lhe luziu a meio do campo, indeciso se deve ir ver ou não, assestando os auto-falantes para o besoiro que atravessou o seu horizonte a zumbir ou roçou por ele na sua passagem de bólide, não são números de alta curiosidade? E que dizer da vaca extraviada do pasto, levada ao acaso, patética e transida do espanto de se ver só, mugindo ao fim do mundo? E a singeleza mofina do carneiro, desgarrado, que dá seis passos e solta o mais lamentoso mé, pára ao buraco duma parede, como se por aquele buraco viesse ter com ele um curral, uma porta, um leito de palhas para se deitar, e subitamente, como se acordasse, dispara o seu mé, mete a galopar, balindo sempre se lhe aparece o zagal ou o cão salvador, a cada mutação lançando por perrice infantil ou necessidade de se ouvir desesperados e insistentes més-més? O cavalo tirado a trote ou à rédea solta, soberbo de porte, correndo desconfiado, nitrindo em par de despique ao vento que lhe enfuna a crina, que de humano lhe leva como símbolo de altivez? Visto em jardim zoológico, o homem é o vivente menos garboso, menos digno, porque tudo nele é estudo e artifício, mais reles de carácter e estupidamente emproado. A menos que seja o estafeta batendo a palmilha do pé; o carregador que vai no seu calvário; o caçador de monte ou caçador de fêmea – é feio, gebo, sem sentido, absurdo dentro das pantalonas, amarrado pela gravata que não tem explicação, erguido no chapéu, e ultra-ridículo debaixo do halo jactancioso de racional.
Aquilino Ribeiro, “Mónica” 

domingo, janeiro 15, 2012

Doiro de água...

Figueira da Foz, 20 de Agosto de 1939 – Não, eu não posso viver à beira-mar. Porque, das duas uma: ou me fico pasmado, parvo, de boca aberta diante deste Doiro de água, ou enlouqueço a sentir bater a minha pulsação angustiosa desta massa imensa. No primeiro caso, sinto-me morrer de imbecilidade; no segundo, estou sempre de mão no pulso a ver quando o coração se cansa.
Miguel Torga, “Diário I”

domingo, janeiro 08, 2012

E assim irão...


Bem de lágrimas. A frase de há séculos recorda-me, por expressiva, o acontecimento de ontem, domingo, ocorrido numa praia para os lados do cabo de Sines. Quando tentava salvar das ondas um rapazinho, foi levada pelo mar uma rapariga de dezoito anos. Como a corrente trazia o cadáver para o Norte, a família, camponeses da região, veio-o seguindo vagarosamente toda a tarde e toda a noite pela costa acima. Chegou hoje aqui, ao meio-dia. Um grupo de mulheres e de homens vestidos de negro e silenciosos. Os olhos, atirados para a distância, ardiam-lhes nas faces cavadas pela dor. Longe, avistava-se o corpo, boiando na vaga. Depois, como a corrente virasse ao Sul, seguiram para baixo, ora parando, ora caminhando, sempre de cara voltada para a água. E assim irão, como bem de lágrimas, até que a morta venha dar à praia.
Manuel da Fonseca, “À Lareira, nos Fundos da Casa onde o Retorta Tem o Café”

quinta-feira, janeiro 05, 2012

Para os estádios do mundo inteiro...

Mão-de-obra

Mohammed Ashraf não vai à escola.
Do romper do dia ao erguer da lua, talha, recorta, perfura, monta e cose as bolas de futebol que saem da aldeia paquistanesa de Umarkot e rolam para os estádios do mundo inteiro.
Mohammed tem onze anos. Executa este trabalho desde os cinco.
Se soubesse ler, e se soubesse ler inglês, compreenderia o que está escrito nas etiquetas que coloca em cada uma das suas obras: “Esta bola não foi fabricada por crianças”.
Eduardo Galeano, “Les Voix du temps”, Lux, Montreal, 2011 – tradução de Júlio Henriques [Le Monde Diplomatique – edição portuguesa n.º 62, Dezembro 2011]