domingo, janeiro 22, 2012

Bicho-homem

Decerto o bicho-homem é da omnímoda criação o ser que menos interesse reveste quando colhido em abandono, isto é, esquecido de si e dos outros. O lobo que vai no seu caminho denota uma exuberância de força e elasticidade que fariam a glória de um atleta olímpico; o asno que chouta livremente pelo caminho fora, indolente e devaneador, detendo-se aqui a colher uma febra de erva, suspendendo-se além na vaga consideração de qualquer coisa que lhe luziu a meio do campo, indeciso se deve ir ver ou não, assestando os auto-falantes para o besoiro que atravessou o seu horizonte a zumbir ou roçou por ele na sua passagem de bólide, não são números de alta curiosidade? E que dizer da vaca extraviada do pasto, levada ao acaso, patética e transida do espanto de se ver só, mugindo ao fim do mundo? E a singeleza mofina do carneiro, desgarrado, que dá seis passos e solta o mais lamentoso mé, pára ao buraco duma parede, como se por aquele buraco viesse ter com ele um curral, uma porta, um leito de palhas para se deitar, e subitamente, como se acordasse, dispara o seu mé, mete a galopar, balindo sempre se lhe aparece o zagal ou o cão salvador, a cada mutação lançando por perrice infantil ou necessidade de se ouvir desesperados e insistentes més-més? O cavalo tirado a trote ou à rédea solta, soberbo de porte, correndo desconfiado, nitrindo em par de despique ao vento que lhe enfuna a crina, que de humano lhe leva como símbolo de altivez? Visto em jardim zoológico, o homem é o vivente menos garboso, menos digno, porque tudo nele é estudo e artifício, mais reles de carácter e estupidamente emproado. A menos que seja o estafeta batendo a palmilha do pé; o carregador que vai no seu calvário; o caçador de monte ou caçador de fêmea – é feio, gebo, sem sentido, absurdo dentro das pantalonas, amarrado pela gravata que não tem explicação, erguido no chapéu, e ultra-ridículo debaixo do halo jactancioso de racional.
Aquilino Ribeiro, “Mónica” 

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