domingo, novembro 03, 2019

Terrível palavra é um Non



Terrível palavra é um Non. Não tem direito, nem avesso: por qualquer lado que o tomeis, sempre soa, e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim, ou do fim para o princípio, sempre é Non. Quando a vara de Moisés se converteu naquela serpente tão feroz, que fugia dela, porque o não mordesse; disse-lhe Deus que a tomasse ao revés, e logo perdeu a figura, a ferocidade, e a peçonha. O Non não é assim: por qualquer parte que o tomeis, sempre é serpente, sempre morde, sempre fere, sempre leva o veneno consigo. Mata a esperança, que é o último remédio, que deixou a natureza a todos os males. Não há corretivo, que o modere, nem arte, que o abrande, nem lisonja, que o adoce. Por mais que confeiteis um Não, sempre amarga; por mais que o enfeiteis, sempre é feio; por mais que o doureis, sempre é ferro. Em nenhuma solfa o podeis pôr, que não seja mal soante, áspero, e duro.
Padre António Vieira, “Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma” – Pregado na Capela Real, Ano de 1670

domingo, março 24, 2019

da construção...

Alguém que se preze e esteja no uso atilado das suas faculdades mentais, andará porventura aos bordos pelas ruas da cidade, sairá de casa em trajes menores para ir tratar dos seus negócios, dirigirá insultos às pessoas desconhecidas por quem for passando? Esperemos que não. E, no entanto, há casas que parecem empenhadas em nos mostrar o destrambelho das suas disposições; fachadas que agridem os nossos olhos com o disparate das formas e das cores; macaquices à laia de ornamentações; janelas que são esgares; portas de expressão tão alvar que, quando abertas, só esperamos que delas saia alguma asneira... e tudo isto se tolera, e ninguém vai preso – nem donos, nem construtores. Bem sabemos que a tolice e a ignorância são úteis até certo ponto; por elas as virtudes opostas melhor se realçam; o mal está em que as obras que deviam exercer influência educativa no sentimento do público, sejam entregues ao livre arbítrio de tais espíritos de negação!
Raul Lino, “Casas Portuguesas – alguns apontamento sobre o arquitectar das casas simples” (1933)


domingo, fevereiro 10, 2019

caracterizadamente português


- É o Sr. Manuel Tomé, o traço de união entre Democracia e o Mosteiro.
Atentando nele e ouvindo-lhe, por momentos, a filosofia alinhavada nas brochuras baratas, vi que era um arremedo de alguns enchedores de gazetas que sacrificam à terceira refeição o banho diário.
Em dez minutos discorreu sobre política, economia, moral, vida moral.
(...) o tipo Manuel Tomé é caracterizadamente português. Veja o seu desdobramento no parlamento, no comício, na escola, na crónica literária... em toda a parte. É a democracia soez pintada de cinismo, a pompear requintes tirocinados em sociedades de ínfimos.
Visconde de Vila-Moura, “Nova Safo”

terça-feira, janeiro 01, 2019

sobre a Arte de escrever

Foram precisos anos de luta, de trabalho duro e de pesquisa, para aprender a fazer um só e simples gesto, e sei o suficiente sobre a Arte de escrever para me aperceber de que necessitaria, de novo, de outros tantos anos de esforço tenaz e concentrado para escrever uma só frase simples e bela. Quantas vezes afirmei que, embora um homem possa aventurar-se por terras do Equador e travar recontros tremendos com tigres e leões, se porventura tentar narrá-los por escrito, não conseguirá fazê-lo, enquanto um outro, que nunca saiu da varanda de sua casa, é capaz de descrever a matança de tigres na selva e fazê-lo de tal modo que os seus leitores não duvidem que na verdade ele andou por esses sítio e com ele partilhem os seus medos e angústias, sintam o cheiro dos leões e ouçam o temeroso aproximar da cobra cascavel. Nada parece ter existência real senão na imaginação e todas as coisas maravilhosas que me aconteceram e vivi podem vir a perder o seu sabor pela simples razão de eu não possuir a pena de um Cervantes ou mesmo de um Casanova.
Isadora Ducan, “A Minha Vida”