sábado, outubro 22, 2016

Viajar...


Porque é que viaja?
Para encontrar aqueles que ainda sabem viver em paz.
Ella Mailart, “A Via Cruel”

sábado, setembro 17, 2016

América


A maravilha das demolições modernas. É um espectáculo inverso ao de um lançamento de foguetão. O edifício de vinte andares desliza todo na vertical para o centro da terra. Abate-se a direito, como um manequim, sem perder a sua postura vertical, como se descesse para um alçapão, e a sua própria superfície no solo absorve as ruínas. Eis uma arte maravilhosa da modernidade, que iguala a dos fogos-de-artifício da nossa infância.
Jean Baudrillard, “América”

sexta-feira, agosto 26, 2016

O lugar do espectador

Se me permite um parentese, é pena que o lugar do espectador seja hoje tão pouco estimulado socialmente. As escolas e a comunicação social promovem com mais ênfase os talentos, as vocações (mesmo quando não existem), o protagonismo, os banais quinze minutos de fama, quando o papel do espectador — do espectador curioso, informado e exigente — é o elemento fundamental para um meio artístico e cultural vivo e sustentável. Acresce que ser espectador é um privilégio, poder desfrutar da maravilha da criação dos grandes artistas. Sempre que posso, abdico de qualquer outra actividade para ser um feliz espectador...
Rui Ângelo Araújo, entrevista, “Notícias de Aguiar” 24 Ago 2016


sábado, agosto 06, 2016

Escrever

Escrever, ou é um exercício memorial, com flores e paisagens, algo autodidacta, como faziam as damas suecas do século XIX, ou como a avozinha Moisés, uma síntese de boa educação, forma de apagar a personalidade e deixar boa impressão aos netos; ou não é.
Para mim não é. Por isso irrito o meu público e mesmo os leitores de pouca dura que me encontram num artigo ou numa entrevista de jornal.
Francamente – porque pensam que eu escrevo? Para incomodar o maior número possível de pessoas, com o máximo de inteligência. Por narcisismo, que é um facto civilizador.
Agustina Bessa-Luís, “Contemplação Carinhosa da Angústia”


sábado, julho 09, 2016

Procuro o livro. O livro que me falta...


Procuro o livro. O livro que me falta. Sei que existe. Não pergunto ao livreiro se o tem. Quero e tenho de o encontrar sozinho. Não sei o título em nenhuma língua. (…) Quando o encontrar, e sei que um dia isso obviamente acontecerá, construirei sobre ele a minha casa, a minha justiça não só minha, a minha revelação definitiva e talvez circular, e poderei então morrer, as flores secas do tabaco semeadas entre as páginas.
Jorge Listopad, “Quatro Estações e Outono”

quinta-feira, junho 02, 2016

Arte, música e poesia




Na Música, compreendo todas as outras artes: ela «fala», «pinta», «movimenta-se», há cor nela, forma, fala. E, contudo, necessita das outras artes para se exprimir com toda a clareza. Mas nenhuma das outras artes contém Música, excepto a Arte da poesia.
José Vianna da Motta, “Diários”

sexta-feira, maio 20, 2016

... mulheres que professam temor a Deus

Que as mulheres se vistam com roupa decente, com pudor e modéstia, sem tranças, nem ouro, nem pérolas, ou vestidos caros, mas sim como fica bem a mulheres que professam temor a Deus por meio de boas obras. Que a mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. Não admito à mulher que ensine, nem que exerça domínio sobre o homem; mas sim que se mantenha em silêncio. Adão foi o primeiro a ser formado; depois Eva. E Adão não foi enganado, mas foi a mulher que, deixando-se enganar, incorreu na transgressão. Todavia, será salva através da parturição de filhos – contanto que as mulheres permaneçam em fé, amor e santidade, com recato.
Timóteo 2:9:15.

segunda-feira, fevereiro 15, 2016

A arte dos poetas

Na verdade todos os bons poetas que escrevem obras épicas não o são devido a uma arte, antes estão inspirados e possuídos quando compõem todos esses belos poemas; e o mesmo se passa com os bons poetas líricos; estes não se encontram na sua devida razão quando compõem os seus belos poemas (...). Logo que ascendem na sua harmonia e no seu ritmo, ficam transformados e possuídos (...). Pois o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada; não pode ele criar poesia antes de sentir inspiração, estar fora de si mesmo e perder o uso da mente (...). Não é, pois, devido à arte que fazem poesia (...) mas por graça divina; assim, a única poesia que cada um é capaz de fazer é da Musa que o possui (...). Estes belos poemas não são humanos, não são criados pelo homem, mas divinos e criados por Deus; e os poetas não são mais do que intérpretes de Deus (...).
Platão, “Sócrates e Íon de Éfeso”

terça-feira, fevereiro 02, 2016

os viajados e os viajantes


Segundo um viajante que conheço, há dois tipos de viandantes: os viajados e os viajantes. Os viajados coleccionam lugares, somam monumentos, vão marcando países com pioneses no mapa da memória. Paris vale pela França, Pequim por toda a China e um safari no Quénia quase a África inteira. O avião é o modo de locomoção preferido: importa é chegar. Quando chega, o viajado confirma com uma fotografia a existência do que conhecera pela fotografia, e dispara sobre a Torre Eiffel, a muralha da China ou os elefantes. Por seu lado, os viajantes é espécie muito distinta: não lhes interessa chegar, mas demorar-se. Demoram a partir. E muitas vezes demoram a chegar. Andam a pé, de bicicleta, quando muito. Os viajantes deambulam. Não vão ver se as coisas estão no sítio. Interessa-lhes o que está fora do sítio.
Maria Luísa Malato, “As Artes Entre As Letras” n.º 163

domingo, janeiro 31, 2016

estados primordiais

E já se vai construindo uma teoria que explica a nossa perpétua solidão: se nos mantivermos sem companheiro entre os que nos disseram ser nossos semelhantes, é porque não encontramos nenhuma criatura espontânea. Ninguém que saiba dar-nos ocasião a estados primordiais, e a abafarmos com eles a nossa existência para uma magia ao mesmo tempo magnífica e brutal.
René Crevel, “O Meu Corpo e Eu”

domingo, janeiro 24, 2016

Madame Bovary, c’est moi

Que sensação deliciosa é escrever, não estar concentrado em si, mas circular por toda a criação de que falamos. Hoje, por exemplo, senti-me homem e mulher juntos, amante e amada sucessivamente, passeei a cavalo por uma floresta, numa tarde de outono, sobre um tapete de folhas amarelas. E eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras que eles trocavam, e o sol vermelho que os fazia cerrar levemente as pálpebras sob o peso do amor.
carta de Flaubert a Louise, 23 de dezembro de 1853


domingo, janeiro 17, 2016

Douro: arquitectura maison style ou suburbana...


Por vezes precisamos de um forasteiro para reconhecer o valor das nossas coisas. Eu não precisava de um forasteiro para valorizar a paisagem, mas precisava de um que me conseguisse fazer ignorar a fealdade da arquitectura maison style ou suburbana dominante nas terrinhas do Douro. O Nik nem via o mau gosto das construções e das ruas, de olhar preso no rio, nas encostas, nos socalcos, e certamente um pouco cego pela intensa luz solar.
Rui Ângelo Araújo, “A Origem do Ódio – Crónica de um Retiro Sentimental”