domingo, dezembro 26, 2021

da Peste - respirar é viver!

 


Assim lhe aconteceu a São Roque: enfermou, e enfermou de peste. E entre as misérias, que fazem tão terrível, tão temido, e tão aborrecido o mal de peste, duas são as que a mim me causam maior horror. A primeira, ser a peste um mal, que do elemento da vida nos faz o instrumento da morte. O elemento da vida é o ar, com que respiramos, a peste é esse mesmo ar corrupto, e inficionado: e que haja um homem de beber o veneno na respiração? Que a respiração, que é o elemento, e alimento da vida, se lhe haja de converter em instrumento da morte? Grande rigor! Expirar é morrer, respirar é viver: e que morra um homem expirando, isso é morte; mas morrer respirando? Que me mate o que me havia de dar vida? Bravo tormento!

Padre António Vieira, “Sermão de São Roque” – Pregado na Capela Real, ano de 1649, havendo Peste no Reino do Algarve

terça-feira, junho 29, 2021

Arte de Amar em Ovídio


Acredita no que te digo: não deve apressar-se o prazer de Vénus,

mas sim, discretamente, fazer por retardá-lo e demorá-lo.

Quando descobrires o ponto onde a mulher se excita ao ser tocada,

não seja o pudor a impedir-te de o tocar;

verás os seus olhos a brilhar de fogo cintilante,

como, tantas vezes, o sol reflecte a luz na superfície da água;

far-se-ão ouvir queixumes, far-se-á ouvir um encantador sussurro

e doces gemidos e palavras apropriadas ao prazer.

Mas não deixes para trás a tua parceira, desfraldando mais largas velas,

nem seja mais rápido o ritmo dela que o teu;

avançai para a meta ao mesmo tempo, então, será pleno o prazer,

quando, a par e par, fazerem, vencidos, a mulher e o homem.

Ovídio, “Arte de Amar”

segunda-feira, junho 21, 2021

Cabo Verde não é África!

 

Quando chega no aviom à África que lhe venderam na passagem aérea, tam cara, o primeiro impulso do européu é pedir a folha de reclamaçom: “Desculpe mas isto aqui nom é África. Eu tirei um bilhete para África. Pode-me dizer para onde fica?”. No bar da coqueta terminal aérea pode ver o Sumol, o Português Suave, os ovos moles de Tentúgal, a cerveja Sagres, e no ecrãn da TV, o jogo do Sporting contra o Porto. Tudo o que tem rótulo apela-nos com familiaridade e provoca o espelhismo de que chegamos a unha jangada na que se prolonga Europa. É a segunda máscara de Cabo Verde. A de que nom é um lugar novo, a de que te tivérom numha caixa troupeleando unhas horas para simular a viagem e estás no mesmo lugar, no velho mundo. A beber cerveja e a comer tremoços.

Quico Cadaval, prefácio de “O Resto é Céu” de silvia penas

sexta-feira, fevereiro 12, 2021

Portugal e Galiza, Castelao

Até há pouco tempo as relações de Portugal e a Galiza reduziam-se a visitas académicas de tunos e professores. A Universidade castelhana que o estado Hespanhol sustenta em Santiago de Compostela, bem podia entender-se com a Universidade de Coimbra - «esse terrível foco desnacionalizador, por cruel ironia situado no meio da mais estranha paisagem quinhentista» [Teixeira de Pascoaes, “O Espírito Lusitano”] –, sem comprometerem o artifício cultural e político em que vivíamos. Os visitantes universitários de além-Minho esmeravam-se em falar-nos num castelhano risível, e jamais deixaram um só livro em português posto à venda nas nossas livrarias. Consideravam natural que os Galegos só pudéssemos comprar obras portuguesas traduzidas infamemente para castelhano, porque não sabiam que podíamos lê-las no idioma de origem. Lembro-me que no ano de 1906 fui eu a Coimbra numa Tuna académica e os estudantes lusitanos assanhavam-se quando eu lhes falava em galego, como se com isso lhes lembrasse qualquer origem bastarda. Não lhes importava que juntos connosco, numa unidade superior às contingências políticas, tivéssemos criado monumentos literários que são marcos da civilização ocidental, numa língua que eles depuraram e agigantaram, mas que nós soubemos manter em pristina enxebreza e no estado eminentemente popular daquela literatura. Para eles a Galiza estava no Norte, embrulhada em nevoeiros e em chuvas... e os estudantes portugueses eram doidos pelas zarzuelas madrilenas e sonhavam com amores sevilhanos... E contai com que na altura primavam em Coimbra os ideais republicanos.

Castelao, “Sempre em Galiza”

segunda-feira, janeiro 25, 2021

Diferença entre pintura e escultura

 


Nunca pintou?

Que horror!

Horror porquê?

A grande diferença entre pintura e escultura é que a primeira é uma falsificação da realidade e a segunda a busca da realidade. Enquanto a pintura falseia uma imagem, a escultura recria uma nova realidade. De tal modo que se todo o criador é um rival de Deus Nosso Senhor, o escultor ainda o é mais. Por isso se escreve no Velho Testamento: não farás imagens talhadas em pedra...

João Cutileiro, entrevista a José Carlos de Vasconcelos, JL 402, de 20 de Março de 1990

sábado, janeiro 16, 2021

Exemplo da Natureza

(...) um exemplo da natureza (de que também Deus é o Autor) excelentemente notado por Santo Isidoro Pelusiota. “Não vedes” (diz ele) “o ordem, a harmonia, e o compasso, com que a natureza distribui os tempos aos frutos da terra, e os mesmos frutos aos tempos? O Janeiro, e o Fevereiro, deu-os às sementeiras, e às raízes; o Março, e o Abril às flores; o Maio , e o Junho aos frutos temporãos; o Julho, e o Agosto à sega, e ao trigo; o Setembro, e o Outubro às vindimas; e o Novembro, e o Dezembro aos frutos serôdios, e mais duros. E porque repartiu assim a natureza os meses, uns frios, outros temperados, outros calmosos, e não quis que os frutos crescessem, amadurecessem, e viessem sazonados, todos juntamente?” Nam si cuncta confestim ad vigorem suum pervenirent, profecto agricolae industria ab temporis brevitatem in angustias veniret. [“Já que, se tudo amadurecesse ao mesmo tempo, decerto o trabalho do lavrador, pela estreiteza do tempo, ficaria em grande aperto”.] “A razão é” (responde o Santo) “porque se os frutos viessem todos juntos, afogar-se-ia a indústria dos lavradores, e impedindo-se uns aos outros, seria maior a perda, que a colheita”.

Padre António Vieira, “Com o Santíssimo Sacramento Exposto” [“Sermões do Rosário, Maria Rosa Mística I”]