sexta-feira, dezembro 18, 2020

Vila Real - da destruição...

Vila Real é uma cidade construída sobre um promontório entre os rios Corgo e Cabril, com a presença das serras do Marão e do Alvão bem visíveis no seu horizonte a oeste. A cidade lidou mal com a voracidade dos tempos pós revolução de abril de 1974. O seu centro histórico foi praticamente todo destruído, restando apenas alguns edifícios religiosos. A cidade medieval desapareceu, mas mantém-se a singularidade geográfica do lugar.

Duarte Belo e João Abreu, “Viagem Maior” (dezembro de 2020)

terça-feira, março 24, 2020

Cão, animal de estimação...

Era o seu animal de estimação. E, na verdade, como não ter estima por quem obedece imediatamente aos nossos gritos e se curva com presteza às nossas repreensões e ameaças? Como não ter amor por quem podemos amarrar pelo pescoço e prender numa coleira e arrastar onde o quisermos, à força de puxões e pancadas educativas? Alguém que podemos trancar num minúsculo banheiro durante a noite e obrigar que fique em silêncio. Como não trazer no coração uma criatura a quem podemos, caso isso nos incomode, cortar uma parte do rabo e das orelhas, injectar hormônios, castrar, secar os testículos, ou retirar o ovário ou o útero inteiro, e com toda a razão nos julgarmos, por isso mesmo, merecedores de elogios e de gratidão por toda a vida? Como não prezar como um verdadeiro ser humano alguém que depois de tudo isso nos adora cegamente, geme de alegria atrás da porta quando ouve nossa chave tilintar e corre contente para lamber nossos pés quando chegamos da rua?
Rubens Figueiredo, “Barco a Seco” 

sábado, março 21, 2020

Sermão do Bom Ladrão


Suponho finalmente que os ladrões, de que falo, não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza, e vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandi est culpa, cum quis furatus fuerit: farutur enim ut esurientem impleat animam | Não é grande a culpa quando o ladrão furta para se saciar [Pr 6, 30]. O ladrão que furta para comer não vai, nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre, e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome, e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno: Non est intelligendum fures esse solum bursarrum incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero vi, et publice exigunt. “Não são só ladrões”, diz o Santo, “os que cortam bolsas, ou espreitam os que vão banhar, para lhe colher a roupa; os ladrões, que mais própria, e dignamente merecem este título são aqueles a quem os Reis encomendam os exércitos, e legiões, ou o governo das Províncias, ou a administração das Cidades, as quais já com manha, já com força roubam, e despojam os povos”. Outros ladrões roubam um homem, estes roubam Cidades, e Reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, sem perigo; os outros, se furtam, são enforcados; estes furtam, e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma tropa de varas, e Ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: “Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos”. Ditosa Grécia, que tinha tal Pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um Cônsul, ou Ditador por ter roubado uma Província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um chamado Seronato disse com discreta contraposição Sidónio Apolinar: Non cessat simul furta, vel punire, vel facere. “Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer”. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.
Padre António Vieira, “Sermão do Bom Ladrão”, ano 1655

quarta-feira, março 18, 2020

São Vicente por Germano Almeida


E acabou por ensaiar uma análise cuja tese principal era a seguinte: São Vicente é uma ilha de povoamento recente, feito com recurso aos naturais das outras ilhas que as secas, a falta de trabalho e outras misérias forçaram à migração. Ora essas criaturas abandonam ilhas de fortes tradições próprias e já com enraizadas formas de estar no mundo, para de repente se lançarem num espaço não só agreste como também relativamente hostil e onde, para sobreviver, são obrigadas a miscigenar diferentes culturas regionais com o consequente prejuízo de nenhuma delas ser suficientemente maioritária para se impor. E é esta circunstância, mais a ausência de uma ancestral ligação a esta terra, que faz do homem de São Vicente um ser leviano e fluido, sem a salutar verticalidade e firmeza do natural de Santo Antão ou Santiago onde os valores sociais regionais se mantiveram intangíveis. E é sem dúvida interessante verificar a perda da robustez, quer física, quer espiritual, desses povos específicos quando postos em contacto estreito com São Vicente. Porque de indivíduos calados, pensados, cuidadosos no uso das palavras, transformam-se em palavrosos fala-baratos em constante necessidade de afirmação pessoal. Mas como se tudo isso não fosse suficiente, a população que habita esta ilha viu-se, logo no início do processo da formação daquilo que poderia vir a ser uma sui generis cultura regional, submetida e influenciada por uma outra cultura, a inglesa, não só poderosa como rígida e dominadora e que por isso mesmo passou a ser ponto de referência essencial para todo o residente desta ilha, sem prejuízo, bem entendido, da constante passagem de outras formas culturais estrangeiras menos notórias mas nem por isso menos marcantes. E a consequência de tudo isto é a verdade do homem de São Vicente ser o mais inautêntico de Cabo Verde.
Germano Almeida, “O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”


quarta-feira, janeiro 29, 2020

cartas a Miguel Torga


Caro Autor. Para acudir a muitos alunos do curso secundário, e a bem do malfadado ensino do português, peço-lhe o grande favor de duas linhas nas quais, em letra bem redonda, afirme a condição humana da Madalena dos seus Bichos, negando que ela seja uma cabra ou uma burra, como pretendem umas senhoras mestras de tão impenetrável ignorância, que só se darão por vencidas se (cito) ‘o próprio Torga disser que ela é mulher’.
curto bilhete de Eduardo Jorge Frias Soeiro, professor, Portimão – “Cartas para Miguel Torga” organização de Carlos Mendes de Sousa

domingo, janeiro 26, 2020

Lisboa, por Miguel de Cervantes


- Alvíssaras, senhores, alvíssaras peço e alvíssaras mereço! Terra! Terra! Embora melhor eu deveria dizer: céu!, céu!, porque sem dúvida estamos no sítio da famosa Lisboa.
(...) Aqui, nesta cidade, verás como são carrascos da doença muitos hospitais que a destroem, e o que neles perde a vida, envolto na eficácia de infinitas indulgências, ganha a do céu. Aqui o amor e a honestidade dão as mãos, e passeiam juntos, a cortesia não deixa que dela se aproxime a arrogância, e a bravura não consente que se aproxime dela a cobardia. Todos os seus moradores são agradáveis, são corteses, são generosos e são enamorados, porque são inteligentes. A cidade é a maior da Europa e a de maiores negócios; nela se descarregam as riquezas do Oriente, que daí são repartidas pelo universo; o seu porto é espaçoso, não só de naves que se possam reduzir a um número, mas de selvas móveis de árvores que os das naves formam; a formosura das mulheres admira e enamora; a galhardia dos homens causa espanto, como eles dizem; finalmente, esta é a terra que dá ao céu um santo e abundantíssimo tributo.
Miguel de Cervantes, “Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda” (1580-1615)