quinta-feira, setembro 30, 2010

Pabia de pabia...

Aqui, nós acreditamos em nós, nos outros e na natureza. Se uma criança chega a correr, vindo de algum lado, e nos diz que viu algo ou um ser estranho algures, não duvidamos, e reunimos as nossas forças para desvendar o mistério. Aqui não há limites para acontecimentos. Qualquer coisa pode acontecer e tudo o que acontece tem a sua razão de ser. É difícil as coisas acontecerem por mero acaso, tudo tem o seu pabia e perdoa-se pabia de pabia. Se morre alguém na tabanca, imediatamente tem de saber o pabia dessa morte, e esse pabia é aceite por todos e todos nele acreditam.
Odete Costa Semedo, “Sónéá histórias e passadas que ouvi contar”

domingo, setembro 26, 2010

edição de autor


por não conseguir ser em nenhum momento um autor convencido, e também certamente porque queria pôr dessa maneira à prova o real interesse dos leitores, usava em todas as edições o mesmo papel baço, o mesmo formato, o mesmo tipo e até o mesmo arranjo gráfico das capas.
Miguel Torga, “A Criação do Mundo - O Sexto Dia”

quinta-feira, setembro 23, 2010

Autor & leitor


Só por um hábito adquirido na linguagem insincera dos prefácios e das dedicatórias é que o escritor diz «o meu leitor». Na realidade, cada leitor é, quando lê, leitor de si próprio. A obra do escritor não passa de uma espécie de instrumento óptico que ele oferece ao leitor a fim de lhe permitir discernir aquilo que, se não fosse aquele livro, ele porventura nunca veria dentro de si mesmo. O reconhecimento em si mesmo que o leitor faz daquilo que o livro diz é a prova da verdade deste e, vice-versa, ao menos em certa medida, a diferença entre os dois textos pode ser muitas vezes imputada, não ao autor, mas ao leitor. Para mais, o livro pode ser demasiado sábio, demasiado obscuro para um eleitor simples e, assim, fornecer-lhe apenas uma lente turva com que não será capaz de ler. Mas outras particularidades (como a inversão) podem levar o leitor a precisar de ler de uma certa maneira para ler bem; o autor não tem porque se ofender, antes, pelo contrário, deve dar a maior liberdade ao leitor dizendo-lhe: «Veja você mesmo se vê melhor com esta lente, ou com essa, ou com aquela.»
Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido / O Tempo Reencontrado”

segunda-feira, setembro 20, 2010

Templo da palavra


o souk, o espaço urbano para o comércio, os ofícios e os lazeres, é o coração das cidades do Sul do Mediterrâneo», onde vão Núbios do Egipto, âmbar de Damasco, curdos de Alepo, berberes de Marraquexe, marcado «pelas experiências lentas do trabalho artesanal e até pelo tempo com tempo para tudo. Este tempo é o dos cafés (...) Jogam dominó, fumam marguilés, passam os olhos por um ou outro jornal (...) Conversam sobre tudo e sobre nada porque o café é o templo da palavra, tal como a mesquita é o da oração»
Miguel Portas, “Périplo” (Maio de 2009)

quinta-feira, setembro 16, 2010

Vinte e três milhares de triliões oitocentos e oitenta e oito milhares de biliões de milhares de milhões!

aquelas medusas microscópicas observadas por Scoresby nos mares da Gronelândia, e cujo número, no espaço de duas milhas quadradas, era, segundo os cálculos deste navegador, superior a vinte e três milhares de triliões oitocentos e oitenta e oito milhares de biliões de milhares de milhões*
[*Como este número foge a toda a apreciação intelectual, o baleeiro inglês, para tornar o resultado do seu cálculo mais compreensível, dizia que para o contar levariam três pessoas dias e noites desde a criação do mundo.]
Júlio Verne, “Aventuras do Capitão Hatteras”

terça-feira, setembro 14, 2010

Testes

«Tu fodeste-a, não foi?»
«Não.»
«Foste há uma quantidade de tempo. Olha, arranhou-te a cara.»
«Já te disse que não aconteceu nada.»
«Despe a camisa. Quero ver as tuas costas!»
«Oh, merda, Lydia.»
«Despe a camisa e a camisa interior.»
Despia-as. Andou à minha volta.
«Que arranhão é este nas tuas costas?»
«Qual arranhão?»
«Há aqui um enorme... é duma unha de mulher.»
«Se ele está aí, foste tu quem o fez...»
«Está bem. Conheço um modo de o descobrir.»
«Como?»
«Vamos para a cama»
«OK!»
Passei no teste com sucesso, mas de seguida pensei: como pode um homem testar a fidelidade de uma mulher? Isto parecia-me injusto.
Charles Bukowski, “Mulheres”

quarta-feira, setembro 08, 2010

Paupérrimo


Nasci numa família pobre. Se tivesse de resumir em poucas palavras o que isso significa, diria que é como viver num corpo sem braços diante de uma mesa posta.
Fabio Volo