quarta-feira, outubro 25, 2017

Galo cantou na baía


Já cantã galo na baía
Sol cá tá longe de somã.
Coma’m ta longe de Maria
Securo tá continuã...
Manuel Lopes, “Galo Cantou na Baía” (1959)

segunda-feira, setembro 04, 2017

País de poetas

A ignorância em que os lusitanos viviam em meados do século era quase comparável à dos seus vizinhos marroquinos, a sul do Golfo dos Algarves. Nos distritos setentrionais – Viana, Braga, Bragança – uma moça que soubesse ler era um autêntico fenómeno. Contudo, é verdade que estes portugueses sem instrução – à diferença de tantos labregos do norte da Europa, rudes apesar de quase letrados – sabem debater com moderação, falar com elegância e mesmo improvisar versos sem que falte o metro, a censura e a autêntica poesia.
Élisée Reclus, “As Terras e as Gentes da Galiza e Portugal na Nova Geografia Universal”


terça-feira, julho 25, 2017

mau-olhado


A tia Conceição veio para quebrar o mau-olhado que me deitaram. Reza. Depois, no prato com água, os pingos de azeite boiam. Mas um afunda-se, muda de cor. – Lá vai a bruxa!
J. Rentes de Carvalho, “O Rebate”

sábado, julho 22, 2017

O massacre português de Wiriamu - Moçambique, 1972


«Normalmente», disse ele [Antonino Melo, alferes, comandante das tropas que coordenou e executou esta operação militar], «deslocávamo-nos até à zona… e limpávamos tudo isso.» Era simples. «Para poupar balas, metíamos as pessoas dentro das palhotas, atirávamos uma granada para o interior, trancávamos a porta e pum!» O telhado de capim era projectado no ar, deixava sair o ar quente e sugava oxigénio fresco, tornando a cair e incendiando tudo. Os que não morriam no momento da explosão, pereciam no incêndio.
Mustafah Dhada, “O Massacre Português de Wiriamu – Moçambique, 1972”

segunda-feira, julho 10, 2017

Ler, paixão de sempre!

Sempre entendi que o tempo era curto para tudo o que eu queria fazer. Ou melhor, para tudo o que queria ler. Porque ler foi a minha paixão de sempre. No entanto, por mais que lesse, iam crescendo as pilhas de livros à minha volta como intermináveis torres de Pizza. E eu tremia ao pensar que nunca viveria anos que chegassem para todos os livros e todos os autores que ansiava ler.
Eu lia furiosamente. Na cama, na casa de banho, à mesa do pequeno almoço, do almoço, do jantar. Reduzira as escolhas possíveis de alimentos para cada refeição em função da leitura. Apenas puré, ervilhas, arroz e tudo o que não necessitasse de garfo e faca. Uma mão a segurar o livro que lia, outra a levar a comida à boca.
Fui mais longe ainda. Vendi o carro para me dedicar irremediavelmente à leitura nos transportes públicos. Lia em todas as esperas que foram sendo cada vez mais frequentes no consultório, na farmácia ou no hospital.
José Fanha, “KM 0”


sábado, junho 17, 2017

Machismo & ditadura

A mentalidade machista que continua a predominar nas sociedades latino-americanas é uma das causas profundas da tolerância do povo em relação a poderes totalitários. Há uma cumplicidade inconsciente entre o povo e os ditadores porque o povo está habituado, desde a infância, a submeter-se à autoridade do pai. O Brasil é um país onde se bate nas mulheres se elas não são fiéis. Não se trata de subestimar as causas económicas e sociais que favorecem, no país, a tomada do poder por ditaduras militares. Mas é inquestionável que é destruindo o machismo dominante que se podem fazer surgir tipos de comportamento que impedirão o retorno dessa forma de poder. O princípio da ditadura está dissimulado na multiplicidade de centros de poder microscópicos em toda a sociedade. Há um pequeno ditador que dorme nos pais, nos maridos, nos professores, nos funcionários, e são todos esses mecanismos bloqueados que impedem o funcionamento da democracia.
Fernando Gabeira, Rio de Janeiro, Fevereiro de 1985 [1968 – A Revolução Que Tanto Amámos!” de Daniel Cohn-Bendit]

sábado, maio 20, 2017

Azimutes

Quando na minha juventude saí de São Miguel para ir viver para Angra, apercebi-me de que era Micaelense …mais tarde, ao mudar-me para Lisboa, reconheci-me açoriano. Na Europa senti-me português. Na América reconheci-me europeu. No Oriente, apercebi-me Ocidental.
Onésimo Teotónio Almeida, “A Obsessão da Portugalidade”


terça-feira, maio 09, 2017

Pintar: o modelo


Pintar de memória? Um disparate. Nenhum pintor o fez. Pintar do natural? Ainda menos. O modelo é necessário. Para o copiar? Não; para pensar nele.
António Machado, “Obras Completas” [“Telhados de Vidro” n.º 19, Maio 2014]

terça-feira, abril 11, 2017

Negritude


Em alguns territórios africanos a administração colonialista proíbe a exibição de películas onde o homem branco apareça em nível ou papel inferior ao do homem negro. Assim simples documentários de encontros de boxe, onde o louro e branco é derrotado pelo seu adversário negro, são interditos. A indústria de televisão foi proibida na África do Sul por tornar possível uma «intimidade» exagerada e incontrolável entre brancos e negros, podendo aqueles entrar em casa destes e podendo os últimos «possuir» e «desfrutar», ainda que apenas espiritualmente, as mulheres brancas que o pequeno écran lhes levaria a casa.
Alfredo Margarido, “Negritude e Humanismo” (1964)

segunda-feira, fevereiro 20, 2017

Povo de São Vicente, Cabo Verde

No presente o povo de S. Vicente é sem dúvida o mais livre de Cabo Verde, liberdade que lhe advém do total despojamento que se pode surpreender nas novelas de Aurélio Gonçalves, o escritor que mais atentamente procurou entrar na alma de uma gente que vive o desencanto com mais alegria que fatalismo. Marx que poderia ter estado a pensar nesta cidade quando escreveu acerca dos proletários que nada têm a perder e um mundo inteiro a ganhar, com a diferença de que este povo sabe que não tem mais nada a ganhar para além do que consegue para o seu passadio diário. Mas é isso mesmo que faz dele um povo de anarquistas, impossível de ser contido à volta de um qualquer ideal, a menos que o limite desse ideal não ultrapasse o imediato, porque mais inconscientemente que consciente, ele aprendeu à sua custa que o amanhã ou não lhe pertence ou pode ser bem pior que o hoje, e por isso pouco se preocupa com ele.
Germano Almeida, “Viagem Pela História de S. Vicente”