quarta-feira, março 18, 2020

São Vicente por Germano Almeida


E acabou por ensaiar uma análise cuja tese principal era a seguinte: São Vicente é uma ilha de povoamento recente, feito com recurso aos naturais das outras ilhas que as secas, a falta de trabalho e outras misérias forçaram à migração. Ora essas criaturas abandonam ilhas de fortes tradições próprias e já com enraizadas formas de estar no mundo, para de repente se lançarem num espaço não só agreste como também relativamente hostil e onde, para sobreviver, são obrigadas a miscigenar diferentes culturas regionais com o consequente prejuízo de nenhuma delas ser suficientemente maioritária para se impor. E é esta circunstância, mais a ausência de uma ancestral ligação a esta terra, que faz do homem de São Vicente um ser leviano e fluido, sem a salutar verticalidade e firmeza do natural de Santo Antão ou Santiago onde os valores sociais regionais se mantiveram intangíveis. E é sem dúvida interessante verificar a perda da robustez, quer física, quer espiritual, desses povos específicos quando postos em contacto estreito com São Vicente. Porque de indivíduos calados, pensados, cuidadosos no uso das palavras, transformam-se em palavrosos fala-baratos em constante necessidade de afirmação pessoal. Mas como se tudo isso não fosse suficiente, a população que habita esta ilha viu-se, logo no início do processo da formação daquilo que poderia vir a ser uma sui generis cultura regional, submetida e influenciada por uma outra cultura, a inglesa, não só poderosa como rígida e dominadora e que por isso mesmo passou a ser ponto de referência essencial para todo o residente desta ilha, sem prejuízo, bem entendido, da constante passagem de outras formas culturais estrangeiras menos notórias mas nem por isso menos marcantes. E a consequência de tudo isto é a verdade do homem de São Vicente ser o mais inautêntico de Cabo Verde.
Germano Almeida, “O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”


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