terça-feira, junho 19, 2018

da Poesia

Não é fácil nos dias de hoje, fazer poesia sentimental sem banalidade. Quase tudo o que havia a dizer já está dito. E o que é pior, dito e vencido. Entre o que se diz e a maneira por que se o faz, o verso foi resvalando para a técnica, e nela firmou seus domínios. A arte de escrever tem superado a mensagem, e a estrutura do verso preocupa mais do que a poesia a transmitir, e que pereceria a sua razão de ser. Já se vai tornando impossível tratar de poesia lírica, uma vez que a lira anda longe, substituída pelo compasso e esquadro. O verso tem adquirido ares de arquitectura, depois de ter passado por algumas confusões com a oratória. E como é tão célere o mundo, e as coisas naturais vão perecendo, e em breve não seremos mais criaturas humanas, mas coisas de humana aparência, funcionando entre outros maquinismos, falar em assuntos de sentimento já é quase arqueologia, porque não há tempo, não há lugar, não há ouvintes, não há razão de ser. (...)
Resta-nos, pois – a José Bruges e a todos nós, os da poesia sentimental – o trabalho de inventar o nosso mundo, e lá viver. Porque a poesia sentimental não é a poesia sentimentalista. Nós não andamos atrás dessas pequenas coisas dos amáveis sonhos de cada dia. Não, não, nós somos uns ambiciosos de coisas sem existência, pelas quais damos a vida, o corpo, a alma, o tempo, enfim, o que somos. E somos os amantes de uma liberdade que nos arranque a estes enredos da terra. E por ela choramos, e por ela nos convertemos em saudade. E isso é a nossa poesia.
Cecília Meireles, dactiloscrito anexo a carta datada de 12 de junho de 1951, envia da a José Bruges [“Acerca do Desterro – hermenêutica literária e arqueologia cultural” de José Rui Teixeira]

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