quarta-feira, agosto 17, 2011

Anagogia!


Instruir é juntar, de fora, alguma coisa ao que já foi dado, como quem reboca parede depois de ser construída e, num refinamento, de estética ou de protecção, passa ainda sobre o reboco seu estuque e sua tinta. Na instrução, considera-se que o menino, ou grande, é parede mal aparelhada e se lhe vai juntando, conforme os recursos, o que for necessário para que se torne mais útil na sua função de parede. Na instrução sou trolha: sei o que quero, de que argamassa disponho ou qual a cal que me convém: estou tranquilo em meu andaime e marco a cada dia a obra feita.
Com a educação, tudo se passa ao contrário: se no instruir sou trolha, no educar, e bem o sabemos já desde o tempo do velho Sócrates, sou eu parteiro. Tenho de ter ciência naturalmente; mas o que tem de esplender cá fora já se encontra lá dentro, e as minhas qualidades principais têm de ser a paciência e o usar de todos os meios que possam fazer dá-lo à luz sem traumatismos nem mutilações. Para o educador, a criança já está interiormente pronta, tal como será o adulto ideal, mas trata-se de a ir colocando em todas as circunstâncias propícias para que se desenvolva, o que significa, como se sabe, que se desembrulhe, se desembarace do que a impede de ser o que é. Quem instrui ataca; quem educa espera. Quem instrui pode fazer o que quer, como um escultor martela estátua; vai o educador pelos caminhos do criador do bicho-da-seda: dá-lhes as folhas certas na altura certa, depois os raminhos secos de encasular, depois os panos da postura, mas a comparação por aqui pára: não mata nunca o bicho no casulo; o que lhe interessa é borboleta voando livre, em sua ruflante brancura; quem instrui apenas mais interessa a seda que o organismo vivo.
Com muita razão se compendiou a ciência do instruir na palavra pedagogia, que significa, na ua etimologia grega, o empurrar de meninos; empurramo-los para o ler, o escrever e o contar, mesmo que o não queiram, já que é a escola obrigatória, até mais obrigatória que a vida, pois até com fome, frio e mau trato se tem de lhe ir à frequência; mais tarde o empurramos para o liceu, se é de boa classe, para os cursos técnicos, se destinado a servir, portanto ao fim de um está a Universidade, ao fim dos outros a oficina, que se nem pensem em juntar, alternando os períodos, por ser ideia, ao que parece, subversiva. Empurra-se o menino, empurra-se o adolescente, empurra-se o adulto: somos todos uns excelentes pedagogos: empurramos.
Mas vai agora surgindo outra atitude, marcada por outra palavra, a de anagogia, ou acto de levar para cima ou de fazer subir; aqui ninguém empurra ninguém: se a perna se mostrou firme e ágil, e só os anormais não a têm assim, vai-se pondo degrau após degrau, até que atinja a maior altura possível, segundo a vocação e as forças que haja em cada um, com um primeiro degrau ao alcance de todos e não apenas dos privilegiados, e sempre um último degrau, pois pouco sabemos dos limites humanos e das fronteiras do mundo. O que temos tido até agora, sob o nome de pedagogia, é de facto, e geralmente violenta, até com o professor batendo e castigando, uma catagogia ou condução para baixo, para muito baixo do que permitiria e sofreria nossa natureza humana; somos instruídos para não crermos em nós, para nos submetermos, para obedecer, não para criar, que foi ao que viemos; venha, pois, a anagogia, o caminho para cima, o mais depressa possível.
Instruir sem educar pode ser a mais perigosa das empresas em que se empenha um homem ou um país, pois que vai pôr instrumentos de vida ou morte nas mãos de quem, se não ignaro por nascimento, ignaro se tornou porque não houve a tal anagogia; toda a vida se transforma em automóvel guiado por inconsciente, coisa que, ao que parece, se multiplica. E aqui temos que nos lançar com todo o nosso esforço: se é fácil abrir escolas ou pode ser fácil mandar à escola, de nada servirá fazê-lo se, ao mesmo tempo, se não fizer educação: a qual, como é simples concluir do que se disse atrás, são condições essenciais a liberdade económica, abrindo o campo, a oficina e a cooperativa, escola em si própria, antes de abrir a sala de aula, a liberdade de informação e de expressão, abolindo tudo o que a possa limitar, mesmo no que mais pareça necessário, já que os prejuízos que vêm da fala franca são sempre menores que os que resultam do silêncio forçado; a liberdade de pensamento, no domínio político, no domínio metafísico, no domínio religiosos, que continuo a ver como o mais importante, mas possível e desejável fora das religiões institucionais tanto como dentro delas; aqui, na liberdade de pensamento, temos a condição fundamental de ser homem: e tão raramente, tão fugazmente, a temos tido na história da Humanidade, que bem conviria ser esse o campo em que, resolvidos os problemas materiais de todos, concentrássemos o nosso sonhar, o nosso querer, o nosso agir.
Agostinho da Silva, «Composição do Brasil», Vida Mundial, n.º 1711, 24 de Março de 1972

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