quinta-feira, janeiro 13, 2011

Da Literatura

A verdadeira vida, a vida enfim descoberta e iluminada, e por consequência a única vida realmente vivida, é a literatura. Essa vida que, em certo sentido, habita a cada instante em todos os homens, tanto como no artista. Mas eles não a vêem porque não a procuram iluminá-la. E, por isso, o seu passado está atravancado de inúmeros instantâneos que permanecem inúteis porque a inteligência não os «revelou». A nossa vida – e também a vida de outros; porque o estilo para o escritor, tal como a cor para o pintor, é, não uma questão de técnica, mas de visão. Ele é a revelação, que seria impossível por processos directos e conscientes, da diferença qualitativa existe na maneira como nos surge o mundo, diferença que se não existisse a arte, ficaria sendo o segredo eterno de cada um. Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que a outra pessoa vê deste universo que não é o mesmo que o nosso, e cujas paisagens teriam permanecido para nós tão desconhecidas como as que poderão existir na Lua. Graças à arte, em lugar de vermos um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se e, quantos mais artistas originais houver, mais mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros que os que rolam no infinito e, que, muitos séculos depois de extinto o fogo donde emanavam, quer esse fogo se chamasse Rembrandt ou Vermeer, nos enviam ainda os seus raios próprios.
Este trabalho do artista, de procurar detectar algo de diferente debaixo das palavras, é exactamente o trabalho inverso daquele que, a cada minuto quando vivemos alheados de nós mesmos, o amor-próprio, a paixão, a inteligência, e também o hábito, realizam em nós, quando amontoam por cima das nossas impressões verdadeiras, para no-las ocultarem por completo, as nomenclaturas, os objectivos práticos a que falsamente chamamos vida. Só ela exprime para os outros, e a nós nos faz ver, a nossa própria vida, esse vida que não pode «observar-se», cujas aparências que observamos precisam de ser traduzidas e muitas vezes lidas às avessas e penosamente decifradas. É esse trabalho feito pelo nosso amor-próprio, pela nossa paixão, pelo nosso espírito de imitação, pela nossa inteligência abstracta. pelos nossos hábitos, é esse trabalho que a arte irá desfazer; é o caminho em sentido contrário, o caminho de retorno às profundidades, onde o que realmente existiu jaz desconhecido para nós, que ela nos levará a percorrer. E seria sem dúvida uma grande tentação recriar a verdadeira vida, rejuvenescer as impressões. Mas para isso seriam necessários vários tipos de coragens, incluindo a coragem sentimental. Porque equivaleria antes de mais nada a desistirmos das nossas mais caras ilusões, a deixarmos de acreditar na objectividade do que cada um de nós elaborou, e, em lugar de nos deixarmos embalar pela centésima vez por estas palavras: «Ela era muito simpática», lermos o que está por baixo: «Gostava de a beijar». É claro que o que eu experimentara nessas horas de amor, todos os homens o experimentaram também. Experimentamos, mas o que se experimentou é como certas fotografias que parecem negras enquanto as não pomos junto a um candeeiro e que, também elas, devem ser observadas às avessas; não sabemos do que se trata até o aproximarmos da inteligência. Só então, quando esta iluminou a experiência, quando a intelectualizou, distinguimos, e com alguma dificuldade, a figura do que sentimos.
Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido / O Tempo Reencontrado”

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