segunda-feira, julho 11, 2011

Luciferinamente...


Coimbra, 5 de Maio de 1946 – (...)
Sou realmente do partido do diabo, como diz Blake de Milton. Comecei por me rebelar contra Deus, descri de todo, e agora estou num politeísmo sortido, ora dependurado nos cornos de Endovélico, ora a dormir nos braços da deusa Nábia, líquidos e frescos. Prego certos pecados, e gosto deles. Pratico-os com toda a minha energia e sinceridade, não por amor das forças do mal, como faria qualquer romântico, mas pela graça do bem que vejo neles. Pecados mortais, pecados veniais, pecados originais... Com franqueza! Além do mais, acho ridículo! O homem só peca contra o homem e contra as suas criações. (...) Sou da terra e sou por ela. Diabo, Santanás, Lúcifer, calham-me, pois, às mil maravilhas. Significam revolta, inferno, lume, enxofre, coisas positiva se vivas. E eu estou vivo. Anjo, fluido, sombra, é que me davam leveza de transfigurado, irrealidade de fantasma, pondo-me em contradição com os livros que escrevo, que são para serem lidos na terra, com palavras, ideias e enredos daqui, que os homens entendam e saboreiem.
Em consciência, sempre cuidei que era exactamente este o caminho construtivo e limpo de um artista, e mantenho-me nessa crença. Não me sinto um destruidor: o que quero é que tudo nasça com a força que as cousas verdadeiras e naturais merecem, e que o ranço velho não estrague o azeite novo. Na dialéctica da vida, por cada alento que vem, há uma morte. Será cruel. Mas isso é com a vida, não é comigo.
Comigo é o risco desta atitude humana, e já não é pouco. Ao fim e ao cabo, talvez que assim a minha alma se não salve, Deus me não queira depois no seu seio. Mas que calor animal (o único calor que eu quero num seio) tem o seio dele? Sim talvez não m queira depois de morto, quando eu já não tiver desejos, paixões, instinto, razão e sentimentos... Há-de ser muito triste, decerto. Mas mais triste seria eu negar-me agora ao aceno saboroso de Vénus, à voz cósmica de Pã, ao calor fecundante de Apolo, a todas as dádivas das amigas divindades terrestres que me solicitam.
Creio que tem havido na nossa terra uma descabida preocupação canónica à ilharga de cada artista. Interessa mais ao zelo nacional averiguar se um poeta morreu sacramentado, do que ler os seus versos. Ninguém quer saber se o caminho de um criador o leva à mora das musas e da beleza; espreita-se da janela, mas é para ver se ele vai à missa. Ora isto é de analfabetos, de pessoas que verdadeiramente não sabem nem querem saber do valor de um poema, do mundo de liberdade e de independência que ele encerra. E uma gente assim não me convém, nem tão-pouco o Deus intolerante que servem. Por isso me vou divertindo com as minhas divindades naturais, luciferinamente, certo que o diabo é ainda uma grande companhia. Foi a ele que Jesus disse que o seu reino não era deste mundo. E o meu, precisamente, é.
Miguel Torga, “Diário III”

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