domingo, março 09, 2014

Sobre a literatura Maria-vai-com-as-outras...



Arquei com o papel em branco como lavrador com a jeira de terra que tem de vessar, gradar, atafolhar, fazer produtiva mercê do sementio, e retrocedi aos caos, primeira fase do meu artigo como do mundo organizado. Penei, suei, rangi os dentes, mas fui avançando. A certa altura, depois de uma passagem laboriosa, de pena suspensa ao alto a considerar com um ar miserando a minha inópia mental, senti a cadela da fome a derriçar-me nas entranhas. Era a primeira vez que dava sinal, mas dali em diante não me consentiu mais tréguas. Embora, naquele dia, trabalhando por várias torturas, pude avistar a cumeada alta e agreste do ofício de escritor! Nunca passará da cepa torta o profissional que tome as palavras pelo seu valor bursátil, isto é, pela sua significação léxica. As palavras são dotadas de tantas qualidades quantas as intrínsecas ao desfrute dos nossos cinco sentidos. Possuem cor, timbre, um timbre diferente da sua prosódia, aroma e certamente densidade. O verdadeiro escritor, quando trabalha sobre o papel branco, procede ao seu emprego em correspondência com estes tópicos. Simultaneamente, trata-as como notas musicais para que não desafinem; como elementos fazendo parte duma escala cromática, para que uma página não seja uma laude de Outono, mortiça e gregoriana. Se descrever a neve, que as palavras voem e revoem no ar, iriadas como as flores da macieira, e se uma sécia ou um papo-seco perfumados, que não seja preciso falar no ylang-ylang para lhe aspirar a droga.
Entre as palavras há simpatias e repulsões instintivas como em todos os seres vivos. L’épithète doit être la maîtresse du substantif, jamais sa femme légitime, escrevia Alphonse Daudet. Cuidado com o relacionamento de uns termos com outros. De facto, têm a sua sensibilidade e cada qual uma política. O pior inimigo da palavra escrita é o lugar-comum, o possidónio, o refervido, resultantes do hábito, da vicieira de falar, do Maria-vai-com-as-outras. Dispô-la num tauxiado imprevisto mas lógico, com ressonância determinada e o seu mundo à espalda, eis o problema. Quanto a ideias, temos conversado. O homem é uma máquina de pensamento, mas a secreção mental sob o ponto de vista literário é tanto melhor quanto menos se pareça com a do seu semelhante. O afrondoso, o díspar, o herético não destoam no haver dum escritor original ou simplesmente digno. O oiro é sempre o mais distinto e o mais raro. Já o pensamento de todos e de cada um é moeda de cobre que não dá para coisa nenhuma. Era com dobrões que em Roma se comprava a salvação.
Aquilino Ribeiro, “Lápides Partidas”

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