Cresci a beijar
livros e pão.
Lá em casa, sempre
que alguém derrubava um livro, ou deixava cair um chapati ou uma «fatia», a
palavra que usávamos para um triângulo de pão fermentado com manteiga, o
objecto caído tinha não só de ser apanhado mas também beijado, num mea culpa
pelo desastre e me sinal de respeito. Eu era tão descuidado e mãos-de-manteiga
como qualquer criança e, portanto, nos meus anos de infância, beijei grande
número de fatias e tive também a
minha conta de livros.
Nos lares devotos
da Índia, as pessoas tinham por hábito – e ainda têm – beijar os livros
sagrados. Mas nós beijávamos tudo. Beijávamos dicionários e atlas. Beijávamos
livros da Enid Blyton e banda-desenhada do Super-Homem. Se algum dia tivesse
deixado cair a lista telefónica, provavelmente também a teria beijado.
Tudo isto aconteceu
antes mesmo de ter beijado uma rapariga. Aliás, até seria quase verdade, ou em
todo o caso suficientemente verdadeiro para um escritor de ficção, dizer que,
mal comecei a beijar raparigas, as minhas actividades relativas a pão e livros
perderam alguma da excitação que lhes era própria. Mas uma pessoa nunca esquece
os seus primeiros amores.
Salman Rushdie, “Mas Já
Nada É Sagrado?”, Granta Portugal n.º 2
1 comentário:
Isso é habito ou de gosto judaico sefardita, beijar o pão e os livros.
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