quarta-feira, agosto 13, 2014

Quero crer...


Todos pensávamos até há pouco tempo que o progresso técnico e o avanço da ciência podiam resolver todos os problemas, podiam ajudar a produção agrícola, iam melhorar a sua potencialidade proteica e vitamínica, contribuindo de forma decisiva para resolver o flagelo da fome no mundo. A miséria e os gritantes desníveis sociais poderiam ser minorados pela inovação tecnológica, pela ciência produzida nos nossos laboratórios, pela agricultura moderna. E, infelizmente, tudo está a acontecer precisamente ao contrário.
A quantidade de produtos tem de facto aumentado, pelo menos aparentemente, mas a qualidade tem vindo a diminuir, com a exagerada utilização de fertilizantes e todo o género de bioquímicos que, lenta mas inexoravelmente, vão degradando os alimentos, provocando e activando enfermidades antes desconhecidas, empobrecendo os solos e inquinando as águas. Isto sucede no chamado mundo rico, porque nos países excluídos do progresso moderno a exploração desenfreada das multinacionais tem-lhes levado a fome e a miséria mais desumanas. É uma situação insustentável que mesmo nos países abastados, em rápido processo de engorda, pode levar a profundas convulsões sociais e sobretudo a uma inadiável revolução agrícola. Seja agricultura verde, seja biológica, algo tem de acontecer em tempo útil, enquanto o solo arável não tiver sido completamente destruído pelos químicos poluentes e pela urbanização selvagem. Porque é da terra que temos de continuar a comer.
A terra, num futuro mais próximo do que imaginamos, terá de sofrer profunda conversão. Na recuperação dos sistemas de rega, no plantio de áreas hortícolas, no incentivo da policultura, na redistribuição da propriedade e, sobretudo, no controlo e na posse social da terra.
Todo este processo, imparável a médio termo, vai necessitar outra vez de camponeses, de alguém que saiba ainda trabalhar os campos. A terra, pela sua raridade cada vez mais preciosa, tende necessariamente a tornar-se, não só propriedade colectiva, como, sobretudo, um património cultural, como um bem social a preservar.
A agricultura capitalista, no seu afã exclusivo de lucro fácil, começa a mostrar a sua incapacidade de abastecer o seu próprio mercado e sobretudo de controlar a qualidade. E a qualidade alimentar começa a ser a pedra de toque de uma sociedade cada vez mais consciente e que neste sector não perdoa a ganância desenfreada dos agentes comprometidos nas mais graves manipulações químicas ou genéticas.
E, no entanto, actualmente todo o sistema de comercialização continua a avaliar os géneros alimentares pelo seu exclusivo peso-valor. Porém, muito brevemente, será decisivo o controlo de qualidade, em que serão excluídos os pesticidas, antibióticos, hormonas e todos os venenos químicos que hoje são incorporados ao alimentos que consumimos diariamente.
Embora tímida, em vários pontos da Europa, e também entre nós, em simultâneo com a concentração em bairros urbanos periféricos dos camponeses do interior rural, é já sensível uma sensação de clausura, um desejo de fuga da selva urbana em que se transformaram as antigas cidades onde ainda há poucos anos era sensível e dominante a escala humana. Os actuai e desproporcionados monstros urbanos têm vindo a matar a sua própria razão de ser. A antiga cidade, a polis mediterrânica – Lisboa e tantas outras – têm vindo a assistir à destruição inexorável da sua cintura agrícola. As suas hortas e pomares, tão celebrados – de loures, de Frielas, da Amadora – estão agora debaixo de prédios e ruas asfaltadas, soterradas por lixeiras e esgotos. Os problemas não vêm apenas da construção, do cimento, e sim do que tudo isso implica, como poluição da terra e das águas. Dentro de poucos anos, toda essa gente em expansão desordenada não vai poder aqui sobreviver. As belas cidades antigas, com os cascos históricos que serviam de pólo aglutinador e de referência cultural, que foram a matriz da nossa civilização, estão a ser abandonados, num estado deplorável de degradação arquitectónica e social. Os bairros-dormitório dos arrabaldes, sem alma e sem qualquer identidade, abrigo privilegiado da marginalidade e da violência, proliferam como cogumelos, entregues em exclusivo aos interesses da especulação imobiliária.
Por outro lado, as zonas rurais do interior estão a ser sistematicamente despojadas dos seus apoios cívicos e administrativos: as escolas fecham por terem poucos alunos, os postos de correio desaparecem, os meios de transporte colectivos são eliminados, os serviços sociais são centralizados, e até costumes culturais e alimentares, fortemente enraizados, são esquecidos ou proibidos porque, simplesmente, não se coadunam com os gostos e hábitos das anafadas sociedades anglo-saxónicas. Tudo isto são incentivos ao abandono das zonas rurais e à superconcentração urbana.
Quero crer, porém, que as zonas rurais do interior, onde ainda resta terra limpa e água não poluída, serão um crescente atractivo e que, numa só geração, irão beneficiar de uma importante recuperação demográfica. Este movimento para o interior, se hoje é ainda incipiente, muitas vezes apenas alimentado pelo turismo ou por um certo romantismo de regresso à natureza, vai com certeza transformar-se num percurso vital de populações, sobretudo jovens, que procuram sobreviver. A água e a terra, como bens cada vez mais preciosos, a própria sociabilidade solidária, continuam a ser indispensáveis para a alimentação do corpo e saúde mental do ser humano, que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, não é muito diferente do barbudo pré-histórico.
Cláudio Torres, “O Alentejo Agrícola – um pouco de história”

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