domingo, julho 30, 2006

Bons sonhos!

Durante muito tempo, acreditei – e isto talvez seja a minha versão de Sir Darius Xerxes Cama de uma quarta função da exterioridade – que em todas as gerações há umas tantas almas, chamemos-lhes felizes ou desgraçadas, que não nasceram para se integrarem, que vieram a este mundo meio separadas, sem uma ligação forte a uma família, a um local, a uma nação ou a uma raça; que pode até haver milhões, biliões de almas assim, talvez tanto de integrados como de não integrados; que, em suma, esse fenómeno pode ser uma manifestação da natureza humana tão “natural” como o seu oposto, mas que ao longo da história dos homens tem sido frustado por falta de oportunidades. E não só: porque as pessoas que dão mais valor à estabilidade e que temem tudo o que seja transitório, incerto, mutável, construíram um poderoso sistema de estigmas e tabus contra o desenraizamento como força destabilizadora e anti-social e assim conformamo-nos a maior parte das vezes, fingimo-nos motivados por lealdades e solidariedades que realmente não sentimos, escondemos as nossas identidades secretas sob a pele falsa das identidades marcadas com o selo de aprovação. Mas a verdade escapa-se nos nossos sonhos; sózinhos na cama (porque todos estamos sós na noite, mesmo quando não dormimos sós), elevamo-nos, pairamos, fugimos. E naqueles sonhos acordados permitidos pela sociedade, os nossos mitos, a nossa arte, as nossas canções, celebramos aqueles que não pertencem ao grupo, os diferentes, os fora-de-lei, os excêntricos. Aquilo que proibimos a nós mesmos, pagamos bom dinheiro para admirar num teatro ou num cinema ou nas folhas de um livro. Nas nossas bibliotecas, livrarias, ou locais de diversão fala-se verdade. O vadio, o assassino, o rebelde, o ladrão, o mutante, o banido, a mascâra. Se não reconhecêssemos neles as necessidades que não podemos preencher, não os inventaríamos vezes e vezes sem conta, em cada sítio, em todas as línguas, em todos os tempos, a cada passo.
Assim que houve navios, corremos para o mar, atravessando oceanos em barquinhos de papel. Assim que houve automóveis, fizemo-nos à estrada. Assim que houve aviões, voámos como setas até aos cantos mais remotos do planeta. Agora sonhamos com o lado escuro da Lua, as planícies rochosas de Marte, os anéis de Saturno, as profundezas interestrelares. Pomos em órbita fotógrafos mecânicos, ou mandamo-los em viagem sem regresso até às estrelas, comovemo-nos até às lágrimas com as maravilhas que eles transmitem, sentimo-nos pequenos perante as grandiosas viagens de galáxias distantes que parecem sustentar as nuvens do céu, damos nomes a rochedos extraterrestres como se fossem animais de estimação. Procuramos a urdidura do espaço, a demarcação dos limites do tempo. E é esta espécie que vive na ilusão de que gosta de ficar em casa e de ter – como se diz? – laços.
Esta é a minha opinião. Ninguém é obrigado a aceitá-la. Talvez não haja assim tanta gente como nós, ao fim e ao cabo. Talvez sejamos de facto destabilizadores e anti-sociais e devêssemos ser proibidos. Todos temos direito às nossas opiniões. Eu só digo durmam bem, queridos. Durmam bem e bons sonhos.

Salman Rushdie, “O Chão Que Ela Pisa”

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigada pela visita!
Por que parte do mundo andas?
beijinhos
nat