Argel, 14 de Setembro de 1953 – As duas bofetadas que um polícia francês
acaba de dar na minha frente a um nativo vagabundo hão-de custar caro à França.
Até me pareceu ver o céu claro da Argélia abrir-se ligeiramente, e Maomé tomar
nota do caso no seu canhenho de represálias.
Este cartesianismo
europeu não se convence de que toda a forma de colonialismo é imoral, seja ela
a mais progressiva materialmente e a mais codificada socialmente. De que à
universal e tentacular presença civilizadora do cristianismo falta sempre um
dos lados do diálogo: a opinião do indígena. Que pensa ele do benefício? Que
disse o Inca no Peru, o Asteca no México, o Negro em Angola? Que diz o Árabe,
aqui? Interessa-lhe mais a penitência da Cruz, ou a volúpia do Crescente?
Prefere ver as formas, ou adivinhá-las? Claramente que nunca passou pela cabeça
dos apóstolos fazer a pergunta. Armados até aos dentes e senhores duma técnica
manual e mental demoníaca, julgam ocioso fazê-la. Mas todo o submetido
responde, mais cedo ou mais tarde, mesmo sem ser interrogado. Embora a séculos
da agressão, os Incas estão a responder, e os Astecas também, e os Negros
também. E não me parece que o mundo islâmico se cale, túrgido como o vejo, com
todas as energias represadas nas dobras do albornoz.
Na voz salmodiada
dos velhos muezins, que desce dos minaretes e repercute multiplicada e
rejuvenescida nas gargantas adolescentes, no silêncio duma casbá onde a alma
forasteira penetra como lâmina em bainha sem fundo, no bulício das feiras que a
miséria circunda dum halo de comício, o espírito ocidental suspicaz surpreende
a orça incoercível duma religião a que já nada de autêntico temos a opor, e o
ódio de uma vontade humana que nunca se concebeu esmagada. Mais do que o poder
dos engenhos de repressão, do que as seduções dum progresso que atropela as
essências, vale a obstinação dum versículo que se estampa nos olhos, depois de
ser carícia nos lábios e friso caligráfico nas mesquitas. E mais ainda do que
ele, vale a liberdade. O gosto de ser livre diante do próprio deus.
Miguel Torga, “Diário VII”