domingo, março 11, 2012

O mercado global

Árvores cor de canela, fruta dourada.
Mãos acaju embrulham as sementes brancas em grandes folhas verdes.
As sementes fermentam ao sol. Depois, uma vez desembrulhadas, ao ar livre, o sol seca-as e, lentamente, vai-lhes dando uma cor acobreada.
O cacau enceta então a sua viagem sobre o mar azul.
Para passar das mãos que o cultivam às bocas que o comem, o cacau é submetido a tratamento nas fábricas das Cadbury, Mars, Nestlé ou Hershey, e depois é posto à venda nos supermercados do mundo: por cada dólar que entra na caixa, chegam três centavos e meio às aldeias de onde vem o cacau.
Richard Swift, um jornalista de Toronto, deslocou-se ao Gana, a uma dessas aldeias.
Visitou as plantações.
Quando se sentou para descansar, tirou do bolso umas barras de chocolate e antes mesmo de poder dar uma trincadela, uma multidão de crianças curiosas rodeou-o.
Nunca tinham provado. Gostaram muito.
Eduardo Galeano, “Les Voix du temps”, Lux, Montreal, 2011 – tradução de Júlio Henriques [Le Monde Diplomatique – edição portuguesa n.º 62, Dezembro 2011]

sábado, março 03, 2012

A gente destas paragens é oriunda da Negrícia...

Aguentei-me à banca de escritor com insuperável teimosia. Maniacamente insatisfeito. Tão bem como um sorriso de mulher, um período a compor fazia-me perder dias inteiros. E para quê? Portugal é terra boa para vinho e cebola, sáfara para as letras. Não enchem o alforge de quem as cultiva. Depois, trabalhar no idioma português pouco mais é que escrever na areia. O escritor fica a apodrecer dentro dele como no ataúde. Para outros domínios não se rompe. Qualquer literato, francês ou alemão, de segunda e terceira plana, adquire com uma perna às costas fama mundial. A mercadoria intelectual portuguesa, ainda a de primeira qualidade, é inexportável. E, antes de mais nada, é sensato que se pergunte: existe?
Como uma língua bunda na generalidade, batida apenas na pregação e no verso; difusa e exuberante no concreto; falha de todo o abstracto; sem matizes nem finuras, feitas por mareantes e cavadores, absorvidos na pobre vida material, e alguns latinizantes, trabalhadores ao torno; com uma língua que é difícil pensar acertado e escrever com graça, retorcida por frades, moços-fidalgos e gente de libré; com uma língua que foge da pena como a greda das mãos experimentadas, abastardada pela francesia – não é lícito perguntar se existe? O facto é que a literatura portuguesa não se exibe, por virtude intrínseca, nos escaparates internacionais e é por fineza que ocupa tal e tal estante nas bibliotecas e sinédrios estrangeiros. Quem atribui a Camões ou Eça voga cosmopolita é cafre ou julga que está a falar para cafres puros.
Em Portugal nunca houve o ofício das letras. A dignidade que confere o trabalho útil e lucrativo, este prestígio, sorte de heráldica, que vinca os mesteres de utilidade pública, desconhecem-nos as letras pátrias. Encontram-se amadores a dar com um pau, profissionais genuínos poucos. A razão é que nunca existiu entre nós necessidade de literatura. Sentiu-se a necessidade de chitas e improvisaram-se teares; de cimento e já se fabrica; de assobios para chamar o guarda e de palitos para palitar os dentes, e os utilíssimos artigos contam no país muitas e poderosas manufacturas. Logicamente, a literatura bruxeleia, a cargo de meia dúzia de curiosos, como a indústria dos tapetes de Arraiolos e das rendas de Peniche. Escrever para quê? O escritor nacional carece até do incentivo da dificuldade e do espírito de emulação. Não igualmente todos brilhantes, ilustres, gloriosos? Compreende-se a interestatuficação: «A gente destas paragens – escrevia um embaixador teutónico – é oriunda da Negrícia; por fora, boa maioria é mulata; por dentro, deve ser toda ébano retinto». Neste sector, estou repleto; nada mais tenho a desejar. Sou glória nacional desde Olhão a Valença.
Aquilino Ribeiro, “Maria Benigna”