quinta-feira, julho 28, 2011

Como os grandes comem os pequenos...


A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comerem os grandes, bastara um grande para muitos pequenos, mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.
Padre António Vieira, “Sermão de Santo António aos peixes” (1642)

sexta-feira, julho 22, 2011

Sobre a guerra colonial


Dirigiu a mais três camaradas brancos a pergunta sobre as suas origens e percebeu que muitos desses homens da Metrópole, se não mesmo a maioria, eram gente do campo, agricultores que a guerra arrancara de Trás-os-Montes, da Beira Interior ou do Alentejo e atirara para o meio do mato em África.
Realmente!, raciocinou, os olhos a deambularem entre os soldados rudes que jantavam com grunhidos, arrotavam em abundância e limpavam a boca às costas das mãos. Como levar a cabo a missão civilizadora se os próprios civilizadores precisavam de ser civilizados?
José Rodrigues dos Santos, “O Anjo Branco”

segunda-feira, julho 18, 2011

Ao sete mil milionésimo cidadão do mundo...


em 2011, ou o mais tardar no início de 2012, espera-se a chegada do sete mil milionésimo cidadão do mundo. Este cidadão tem sete em dez hipóteses de nascer num país pobre, numa família desfavorecida. Devemos enviar-lhe uma mensagem de boas-vindas ou uma carta a pedir desculpa?
George Minois, Le Poids du Nombre, Éditions Perrin, Paris, 2011

sexta-feira, julho 15, 2011

segunda-feira, julho 11, 2011

Luciferinamente...


Coimbra, 5 de Maio de 1946 – (...)
Sou realmente do partido do diabo, como diz Blake de Milton. Comecei por me rebelar contra Deus, descri de todo, e agora estou num politeísmo sortido, ora dependurado nos cornos de Endovélico, ora a dormir nos braços da deusa Nábia, líquidos e frescos. Prego certos pecados, e gosto deles. Pratico-os com toda a minha energia e sinceridade, não por amor das forças do mal, como faria qualquer romântico, mas pela graça do bem que vejo neles. Pecados mortais, pecados veniais, pecados originais... Com franqueza! Além do mais, acho ridículo! O homem só peca contra o homem e contra as suas criações. (...) Sou da terra e sou por ela. Diabo, Santanás, Lúcifer, calham-me, pois, às mil maravilhas. Significam revolta, inferno, lume, enxofre, coisas positiva se vivas. E eu estou vivo. Anjo, fluido, sombra, é que me davam leveza de transfigurado, irrealidade de fantasma, pondo-me em contradição com os livros que escrevo, que são para serem lidos na terra, com palavras, ideias e enredos daqui, que os homens entendam e saboreiem.
Em consciência, sempre cuidei que era exactamente este o caminho construtivo e limpo de um artista, e mantenho-me nessa crença. Não me sinto um destruidor: o que quero é que tudo nasça com a força que as cousas verdadeiras e naturais merecem, e que o ranço velho não estrague o azeite novo. Na dialéctica da vida, por cada alento que vem, há uma morte. Será cruel. Mas isso é com a vida, não é comigo.
Comigo é o risco desta atitude humana, e já não é pouco. Ao fim e ao cabo, talvez que assim a minha alma se não salve, Deus me não queira depois no seu seio. Mas que calor animal (o único calor que eu quero num seio) tem o seio dele? Sim talvez não m queira depois de morto, quando eu já não tiver desejos, paixões, instinto, razão e sentimentos... Há-de ser muito triste, decerto. Mas mais triste seria eu negar-me agora ao aceno saboroso de Vénus, à voz cósmica de Pã, ao calor fecundante de Apolo, a todas as dádivas das amigas divindades terrestres que me solicitam.
Creio que tem havido na nossa terra uma descabida preocupação canónica à ilharga de cada artista. Interessa mais ao zelo nacional averiguar se um poeta morreu sacramentado, do que ler os seus versos. Ninguém quer saber se o caminho de um criador o leva à mora das musas e da beleza; espreita-se da janela, mas é para ver se ele vai à missa. Ora isto é de analfabetos, de pessoas que verdadeiramente não sabem nem querem saber do valor de um poema, do mundo de liberdade e de independência que ele encerra. E uma gente assim não me convém, nem tão-pouco o Deus intolerante que servem. Por isso me vou divertindo com as minhas divindades naturais, luciferinamente, certo que o diabo é ainda uma grande companhia. Foi a ele que Jesus disse que o seu reino não era deste mundo. E o meu, precisamente, é.
Miguel Torga, “Diário III”

sexta-feira, julho 08, 2011

Um dia aparece um livro...

Quando nascemos no campo rodeiam-nos de seguida os ambientes e as coisas mais antigas e essenciais. A terra, o vento, os rios, os pássaros, as árvores, as casas. Ama-se espontaneamente aquilo que os rodeia. Compreende-se, por intuição, os trabalhos misteriosos da terra e do céu. Os dias sucedem às noites. As árvores crescem. Os pássaros nidificam. Os animais procriam.
Um dia aparece um livro. Por puro acaso, ou desleixo, já lhe faltam o título, o nome do autor e as primeiras páginas. É o primeiro livro fora da escola e da catequese. É um livro à solta. Duas ou três crianças juntando esforçadamente as suas letras acabam por devorá-lo. É Verão. As crianças levam o livro para um lugar fresco. Para debaixo dessas ramas de ervilhas que crescem desenfreadamente com as dos feijoeiros pelas estacas, cheias de flores brancas e vermelhas. Jamais saberão o título daquele livro incompleto, mas foi por ele que alcançaram pela primeira vez o fascínio do mar que as montanhas circundantes não deixavam ver.
Não era nenhum livro de Melville, de Stevenson ou de Conrad. Era uma história simples para adolescentes sobre um homem em perpétua aventura pelos mares. Quando finalmente se julgava a salvo numa ilha e ia espetar a sua bandeira, apercebia-se de que estava, afinal, sobre o dorso de uma grande baleia e logo recomeçava a aventura.
Ao juntar as letras, ao articular as palavras e seguindo as frases, as crianças viam produzir-se um mundo fabuloso, inquietante, logo posto em movimento pela magia, lembrando o jogo de juntar água ao carboreto para produzir uma imensa luz azulada. Com o tempo, a leitura transformava-se em vício desejoso de íntima acção e deslumbramento. O fascínio descobre-se então em cada palavra, prescrutando os seus diversos significados, escolhendo-se os impulsos, provocando-lhes limites e extravasamentos, sentimentos inesperados, relacionamentos, surpresas conforme a sua situação e confrontos.
Manuel Hermínio Monteiro

segunda-feira, julho 04, 2011

Un viaje portugués


(...) le gustaría quedarse sentado en este camino, con el cigarro en los labios, como los viejos. El viajero es aún muy joven (o al menos eso quisiera), pero a veces, como ahora, le gustaría ser viejo. Así no tendría que andar vagando de un lado a otro e podría quedarse para siempre aquí sentado, mirando pasar la vida, sin tener que andar todo el día persiguiéndola inúltimente.
Julio Llamazares, “Trás-os-Montes (un viaje portugués)”