terça-feira, março 24, 2020

Cão, animal de estimação...

Era o seu animal de estimação. E, na verdade, como não ter estima por quem obedece imediatamente aos nossos gritos e se curva com presteza às nossas repreensões e ameaças? Como não ter amor por quem podemos amarrar pelo pescoço e prender numa coleira e arrastar onde o quisermos, à força de puxões e pancadas educativas? Alguém que podemos trancar num minúsculo banheiro durante a noite e obrigar que fique em silêncio. Como não trazer no coração uma criatura a quem podemos, caso isso nos incomode, cortar uma parte do rabo e das orelhas, injectar hormônios, castrar, secar os testículos, ou retirar o ovário ou o útero inteiro, e com toda a razão nos julgarmos, por isso mesmo, merecedores de elogios e de gratidão por toda a vida? Como não prezar como um verdadeiro ser humano alguém que depois de tudo isso nos adora cegamente, geme de alegria atrás da porta quando ouve nossa chave tilintar e corre contente para lamber nossos pés quando chegamos da rua?
Rubens Figueiredo, “Barco a Seco” 

sábado, março 21, 2020

Sermão do Bom Ladrão


Suponho finalmente que os ladrões, de que falo, não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza, e vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandi est culpa, cum quis furatus fuerit: farutur enim ut esurientem impleat animam | Não é grande a culpa quando o ladrão furta para se saciar [Pr 6, 30]. O ladrão que furta para comer não vai, nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre, e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome, e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno: Non est intelligendum fures esse solum bursarrum incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero vi, et publice exigunt. “Não são só ladrões”, diz o Santo, “os que cortam bolsas, ou espreitam os que vão banhar, para lhe colher a roupa; os ladrões, que mais própria, e dignamente merecem este título são aqueles a quem os Reis encomendam os exércitos, e legiões, ou o governo das Províncias, ou a administração das Cidades, as quais já com manha, já com força roubam, e despojam os povos”. Outros ladrões roubam um homem, estes roubam Cidades, e Reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, sem perigo; os outros, se furtam, são enforcados; estes furtam, e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma tropa de varas, e Ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: “Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos”. Ditosa Grécia, que tinha tal Pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um Cônsul, ou Ditador por ter roubado uma Província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um chamado Seronato disse com discreta contraposição Sidónio Apolinar: Non cessat simul furta, vel punire, vel facere. “Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer”. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.
Padre António Vieira, “Sermão do Bom Ladrão”, ano 1655

quarta-feira, março 18, 2020

São Vicente por Germano Almeida


E acabou por ensaiar uma análise cuja tese principal era a seguinte: São Vicente é uma ilha de povoamento recente, feito com recurso aos naturais das outras ilhas que as secas, a falta de trabalho e outras misérias forçaram à migração. Ora essas criaturas abandonam ilhas de fortes tradições próprias e já com enraizadas formas de estar no mundo, para de repente se lançarem num espaço não só agreste como também relativamente hostil e onde, para sobreviver, são obrigadas a miscigenar diferentes culturas regionais com o consequente prejuízo de nenhuma delas ser suficientemente maioritária para se impor. E é esta circunstância, mais a ausência de uma ancestral ligação a esta terra, que faz do homem de São Vicente um ser leviano e fluido, sem a salutar verticalidade e firmeza do natural de Santo Antão ou Santiago onde os valores sociais regionais se mantiveram intangíveis. E é sem dúvida interessante verificar a perda da robustez, quer física, quer espiritual, desses povos específicos quando postos em contacto estreito com São Vicente. Porque de indivíduos calados, pensados, cuidadosos no uso das palavras, transformam-se em palavrosos fala-baratos em constante necessidade de afirmação pessoal. Mas como se tudo isso não fosse suficiente, a população que habita esta ilha viu-se, logo no início do processo da formação daquilo que poderia vir a ser uma sui generis cultura regional, submetida e influenciada por uma outra cultura, a inglesa, não só poderosa como rígida e dominadora e que por isso mesmo passou a ser ponto de referência essencial para todo o residente desta ilha, sem prejuízo, bem entendido, da constante passagem de outras formas culturais estrangeiras menos notórias mas nem por isso menos marcantes. E a consequência de tudo isto é a verdade do homem de São Vicente ser o mais inautêntico de Cabo Verde.
Germano Almeida, “O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”