Era o seu animal de
estimação. E, na verdade, como não ter estima por quem obedece imediatamente
aos nossos gritos e se curva com presteza às nossas repreensões e ameaças? Como
não ter amor por quem podemos amarrar pelo pescoço e prender numa coleira e
arrastar onde o quisermos, à força de puxões e pancadas educativas? Alguém que
podemos trancar num minúsculo banheiro durante a noite e obrigar que fique em
silêncio. Como não trazer no coração uma criatura a quem podemos, caso isso nos
incomode, cortar uma parte do rabo e das orelhas, injectar hormônios, castrar,
secar os testículos, ou retirar o ovário ou o útero inteiro, e com toda a razão
nos julgarmos, por isso mesmo, merecedores de elogios e de gratidão por toda a
vida? Como não prezar como um verdadeiro ser humano alguém que depois de tudo
isso nos adora cegamente, geme de alegria atrás da porta quando ouve nossa
chave tilintar e corre contente para lamber nossos pés quando chegamos da rua?
Rubens Figueiredo, “Barco a
Seco”
Citações... Acontece em leituras deparar com a frase perfeita, ou um pensamento elaborado tal qual o sentimos e gostaríamos de escrever, ou o espanto da descoberta de um conceito com o qual passamos a concordar plenamente, ou de uma ideia marcada pela incongruência do tempo, etc! É disso que se trata este blog. Não irei escrever nada de meu mas irei citar (apropriar-me) o que é de outros e que a outros pertence.
terça-feira, março 24, 2020
sábado, março 21, 2020
Sermão do Bom Ladrão
Suponho finalmente
que os ladrões, de que falo, não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza, e
vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma sua
miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandi est
culpa, cum quis furatus fuerit: farutur enim ut esurientem impleat animam |
Não é grande a culpa quando o ladrão furta para se saciar [Pr 6, 30]. O ladrão
que furta para comer não vai, nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas
levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre, e de mais alta
esfera, os quais debaixo do mesmo nome, e do mesmo predicamento distingue muito
bem São Basílio Magno: Non est intelligendum fures esse solum bursarrum
incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel
qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt,
hoc vero vi, et publice exigunt. “Não são só ladrões”, diz o Santo, “os que
cortam bolsas, ou espreitam os que vão banhar, para lhe colher a roupa; os
ladrões, que mais própria, e dignamente merecem este título são aqueles a quem
os Reis encomendam os exércitos, e legiões, ou o governo das Províncias, ou a
administração das Cidades, as quais já com manha, já com força roubam, e
despojam os povos”. Outros ladrões roubam um homem, estes roubam Cidades, e
Reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, sem perigo; os
outros, se furtam, são enforcados; estes furtam, e enforcam. Diógenes, que tudo
via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma tropa de varas, e
Ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: “Lá
vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos”. Ditosa Grécia, que tinha tal
Pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as
mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter
furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um Cônsul, ou Ditador
por ter roubado uma Província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos
ladrões triunfantes? De um chamado Seronato disse com discreta contraposição
Sidónio Apolinar: Non cessat simul furta, vel punire, vel facere.
“Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os
fazer”. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do
mundo, para roubar ele só.
Padre António Vieira,
“Sermão do Bom Ladrão”, ano 1655
quarta-feira, março 18, 2020
São Vicente por Germano Almeida
E acabou por
ensaiar uma análise cuja tese principal era a seguinte: São Vicente é uma ilha
de povoamento recente, feito com recurso aos naturais das outras ilhas que as
secas, a falta de trabalho e outras misérias forçaram à migração. Ora essas
criaturas abandonam ilhas de fortes tradições próprias e já com enraizadas
formas de estar no mundo, para de repente se lançarem num espaço não só agreste
como também relativamente hostil e onde, para sobreviver, são obrigadas a
miscigenar diferentes culturas regionais com o consequente prejuízo de nenhuma
delas ser suficientemente maioritária para se impor. E é esta circunstância,
mais a ausência de uma ancestral ligação a esta terra, que faz do homem de São
Vicente um ser leviano e fluido, sem a salutar verticalidade e firmeza do
natural de Santo Antão ou Santiago onde os valores sociais regionais se
mantiveram intangíveis. E é sem dúvida interessante verificar a perda da
robustez, quer física, quer espiritual, desses povos específicos quando postos
em contacto estreito com São Vicente. Porque de indivíduos calados, pensados,
cuidadosos no uso das palavras, transformam-se em palavrosos fala-baratos em
constante necessidade de afirmação pessoal. Mas como se tudo isso não fosse
suficiente, a população que habita esta ilha viu-se, logo no início do processo
da formação daquilo que poderia vir a ser uma sui generis cultura
regional, submetida e influenciada por uma outra cultura, a inglesa, não só
poderosa como rígida e dominadora e que por isso mesmo passou a ser ponto de
referência essencial para todo o residente desta ilha, sem prejuízo, bem
entendido, da constante passagem de outras formas culturais estrangeiras menos
notórias mas nem por isso menos marcantes. E a consequência de tudo isto é a
verdade do homem de São Vicente ser o mais inautêntico de Cabo Verde.
Germano Almeida, “O
Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”
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