quarta-feira, agosto 31, 2011

Sobre um país de brandos costumes...




Os pretos em África têm de ser dirigidos e enquadrados por europeus mas são indispensáveis como auxiliares destes
Marcelo Caetano, “Os Nativos na Economia Africana” (1954)

domingo, agosto 21, 2011

Um café!

Certo dia, explodiu numa grande danação contra o neto, que à viva força teimava que ela havia de beber café. «Posso lá com tal bebida!», gritou-lhe o Costa Cardoso. «Uma planta que só nasce em zonas doentias da África e do Brasil, onde se morre de febres medonhas! E o grão? Quantos trabalhos para trazê-lo, ao lombo, sob o fogo do Sol, até à Costa? Quantos trabalhos para embarcá-lo, atravessar as tempestades do oceano, desembarcá-lo, torrá-lo, moê-lo. Pois, após tantas canseiras, tantas, mal mergulham o pó na cafeteira, zás, deitam-no fora! E essa mixórdia deixa a água tão suja e amarga que só com açúcar conseguem bebê-lo! Não! Nunca hei-de tocar-lhe sequer!»
Manuel da Fonseca, “À Lareira, nos Fundos da Casa onde o Retorta Tem o Café”

quarta-feira, agosto 17, 2011

Anagogia!


Instruir é juntar, de fora, alguma coisa ao que já foi dado, como quem reboca parede depois de ser construída e, num refinamento, de estética ou de protecção, passa ainda sobre o reboco seu estuque e sua tinta. Na instrução, considera-se que o menino, ou grande, é parede mal aparelhada e se lhe vai juntando, conforme os recursos, o que for necessário para que se torne mais útil na sua função de parede. Na instrução sou trolha: sei o que quero, de que argamassa disponho ou qual a cal que me convém: estou tranquilo em meu andaime e marco a cada dia a obra feita.
Com a educação, tudo se passa ao contrário: se no instruir sou trolha, no educar, e bem o sabemos já desde o tempo do velho Sócrates, sou eu parteiro. Tenho de ter ciência naturalmente; mas o que tem de esplender cá fora já se encontra lá dentro, e as minhas qualidades principais têm de ser a paciência e o usar de todos os meios que possam fazer dá-lo à luz sem traumatismos nem mutilações. Para o educador, a criança já está interiormente pronta, tal como será o adulto ideal, mas trata-se de a ir colocando em todas as circunstâncias propícias para que se desenvolva, o que significa, como se sabe, que se desembrulhe, se desembarace do que a impede de ser o que é. Quem instrui ataca; quem educa espera. Quem instrui pode fazer o que quer, como um escultor martela estátua; vai o educador pelos caminhos do criador do bicho-da-seda: dá-lhes as folhas certas na altura certa, depois os raminhos secos de encasular, depois os panos da postura, mas a comparação por aqui pára: não mata nunca o bicho no casulo; o que lhe interessa é borboleta voando livre, em sua ruflante brancura; quem instrui apenas mais interessa a seda que o organismo vivo.
Com muita razão se compendiou a ciência do instruir na palavra pedagogia, que significa, na ua etimologia grega, o empurrar de meninos; empurramo-los para o ler, o escrever e o contar, mesmo que o não queiram, já que é a escola obrigatória, até mais obrigatória que a vida, pois até com fome, frio e mau trato se tem de lhe ir à frequência; mais tarde o empurramos para o liceu, se é de boa classe, para os cursos técnicos, se destinado a servir, portanto ao fim de um está a Universidade, ao fim dos outros a oficina, que se nem pensem em juntar, alternando os períodos, por ser ideia, ao que parece, subversiva. Empurra-se o menino, empurra-se o adolescente, empurra-se o adulto: somos todos uns excelentes pedagogos: empurramos.
Mas vai agora surgindo outra atitude, marcada por outra palavra, a de anagogia, ou acto de levar para cima ou de fazer subir; aqui ninguém empurra ninguém: se a perna se mostrou firme e ágil, e só os anormais não a têm assim, vai-se pondo degrau após degrau, até que atinja a maior altura possível, segundo a vocação e as forças que haja em cada um, com um primeiro degrau ao alcance de todos e não apenas dos privilegiados, e sempre um último degrau, pois pouco sabemos dos limites humanos e das fronteiras do mundo. O que temos tido até agora, sob o nome de pedagogia, é de facto, e geralmente violenta, até com o professor batendo e castigando, uma catagogia ou condução para baixo, para muito baixo do que permitiria e sofreria nossa natureza humana; somos instruídos para não crermos em nós, para nos submetermos, para obedecer, não para criar, que foi ao que viemos; venha, pois, a anagogia, o caminho para cima, o mais depressa possível.
Instruir sem educar pode ser a mais perigosa das empresas em que se empenha um homem ou um país, pois que vai pôr instrumentos de vida ou morte nas mãos de quem, se não ignaro por nascimento, ignaro se tornou porque não houve a tal anagogia; toda a vida se transforma em automóvel guiado por inconsciente, coisa que, ao que parece, se multiplica. E aqui temos que nos lançar com todo o nosso esforço: se é fácil abrir escolas ou pode ser fácil mandar à escola, de nada servirá fazê-lo se, ao mesmo tempo, se não fizer educação: a qual, como é simples concluir do que se disse atrás, são condições essenciais a liberdade económica, abrindo o campo, a oficina e a cooperativa, escola em si própria, antes de abrir a sala de aula, a liberdade de informação e de expressão, abolindo tudo o que a possa limitar, mesmo no que mais pareça necessário, já que os prejuízos que vêm da fala franca são sempre menores que os que resultam do silêncio forçado; a liberdade de pensamento, no domínio político, no domínio metafísico, no domínio religiosos, que continuo a ver como o mais importante, mas possível e desejável fora das religiões institucionais tanto como dentro delas; aqui, na liberdade de pensamento, temos a condição fundamental de ser homem: e tão raramente, tão fugazmente, a temos tido na história da Humanidade, que bem conviria ser esse o campo em que, resolvidos os problemas materiais de todos, concentrássemos o nosso sonhar, o nosso querer, o nosso agir.
Agostinho da Silva, «Composição do Brasil», Vida Mundial, n.º 1711, 24 de Março de 1972

segunda-feira, agosto 08, 2011

Dos suíços...


Pensando na calma, na fleuma, no civismo dos Suíços, que por vezes toca as raias da mania, lembro-me agora duma frase da marquesa de Quintanar, que acabava de passar seis meses na Suíça, no sanatório, com a filha doente. De regresso a Madrid, ao descer do avião, explodiu:
- Caramba! Já se pode cuspir no chão!
E tirando da algibeira uns poucos papéis de rebuçados amarrotados, espalhou-os aos quatro ventos, num gesto vingativo que muito a aliviou.
Fernanda de Castro, “Ao Fim da Memória II 1939 – 1987”

sexta-feira, agosto 05, 2011

Velocidades


Coimbra, 26 de Junho de 1944 – Aflitiva a impaciência que começo a sentir nos comboios. Cada paragem, cada abrandamento de velocidade dão-me cabo dos nervos. Desespero-me por levar sete horas de Coimbra a Lisboa, quando eu sei que já foram precisos dias para percorrer tal trajecto. Mas não há História que me console. Ponho-me a pensar assim: nesse tempo a coisa era com cavalos, e uma solidariedade de suor, um limite muscular que a nossa própria animalidade media, ajudavam a respeitar o ritmo fisiológico do movimento. Rebentar montadas era um recurso extremo, que não se fazia sem dor. A espora que feria a ilharga tingia-se de sangue, mesmo que fosse de oiro. De maneira que o cilício que picava a besta picava o homem. Mas já que o progresso se riu da mula chocalheira e da diligência, então quero a mecânica a mil à hora, a velocidade levada até onde a corda der. Entregou-se o caminho não a cascos caseiros e familiares, mas a eixos de aço. Haja, por conseguinte, um chicote de lume a fazer voar as rodas.
E não será um sentimento idêntico ao meu que gera este delírio da velocidade, esta corrida cada vez mais desesperada do nosso tempo? Quebrou-se a amarra do navio; e os tripulantes, agora, o que querem é um vendaval que os leve o mais depressa possível a qualquer porto ou à morte.
Miguel Torga, “Diário III”

terça-feira, agosto 02, 2011

Douro, vulgo d'oiro


o Douro é a paisagem vinhateira mais bela do mundo acima de Bordeus ou de Champagne. a sua grandiosidade é obra do homem de rosto descoberto que removeu xistos e ergueu socalcos a braços. o Douro é essa escadaria monumental de vinhedos plantados em xisto.
José A. Salvador, “Projecto Património” n.º 2 Julho 1995