Suponho finalmente
que os ladrões, de que falo, não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza, e
vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma sua
miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandi est
culpa, cum quis furatus fuerit: farutur enim ut esurientem impleat animam |
Não é grande a culpa quando o ladrão furta para se saciar [Pr 6, 30]. O ladrão
que furta para comer não vai, nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas
levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre, e de mais alta
esfera, os quais debaixo do mesmo nome, e do mesmo predicamento distingue muito
bem São Basílio Magno: Non est intelligendum fures esse solum bursarrum
incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel
qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt,
hoc vero vi, et publice exigunt. “Não são só ladrões”, diz o Santo, “os que
cortam bolsas, ou espreitam os que vão banhar, para lhe colher a roupa; os
ladrões, que mais própria, e dignamente merecem este título são aqueles a quem
os Reis encomendam os exércitos, e legiões, ou o governo das Províncias, ou a
administração das Cidades, as quais já com manha, já com força roubam, e
despojam os povos”. Outros ladrões roubam um homem, estes roubam Cidades, e
Reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, sem perigo; os
outros, se furtam, são enforcados; estes furtam, e enforcam. Diógenes, que tudo
via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma tropa de varas, e
Ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: “Lá
vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos”. Ditosa Grécia, que tinha tal
Pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as
mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter
furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um Cônsul, ou Ditador
por ter roubado uma Província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos
ladrões triunfantes? De um chamado Seronato disse com discreta contraposição
Sidónio Apolinar: Non cessat simul furta, vel punire, vel facere.
“Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os
fazer”. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do
mundo, para roubar ele só.
Padre António Vieira,
“Sermão do Bom Ladrão”, ano 1655