5 de Setembro
[1908] – Pergunto-me frequentemente se este diário é sincero, ou seja, se é um
documento absolutamente íntimo.
A primeira questão
que se coloca é esta: é possível a expressão da intimidade? Quero dizer a
expressão clara, coerente, inteligível, da intimidade. A intimidade pura, bem
discernida, deve ser a espontaneidade pura, ou seja, uma segregação visceral e
desconexa. Se alguém dispusesse de uma linguagem e de um léxico eficaz para
representar esta segregação, não haveria problema. Mas a verdade é que não
existe nem um estilo adequado à sinceridade nem um léxico eficiente. Mas,
supondo ainda por um momento que a intimidade se pudesse expressar, quem a
entenderia? Quem poderia compreender? Se não fosse única, particularista,
pessoalíssima, absolutamente primigénia, que aspecto teria? Como se poderia
imaginar a sua presença? Quando não podemos esclarecer a nebulosa interna,
habitualmente dizemos: sei do que estou a falar... Os bêbados dizem o mesmo.
Suspeito que as crianças, quando não conseguem fazer-se entender, pensam o
mesmo. A minha ideia, então, é que a intimidade é inexprimível por falta de
instrumentos de expressão, que a sua projecção exterior é praticamente
informulável. Pensemos apenas na enorme força de deformação e de falsificação
que tem o estilo tradicional, a ortografia e a sintaxe habitual, em toda a
tentativa de querer expressar o pensamento de aparência mais simples, na
pretensão de descrever o objecto mais insignificante.
E, como se isto não
fosse suficiente, há todos os monstros invencíveis: a vaidade, o tartufismo, a
educação, o egoísmo, o convencionalismo, a inveja, o ressentimento, a
humilhação, a influência do dinheiro ou a falta dele, a impotência... ou seja,
todo o detrito de paixões e de sentimentos que alguém arrasta desde que se
levanta até que se deita. Metidos neste jogo de forças obscuras mas de grande
peso, as contradições íntimas são permanentes. Por exemplo: tenho tendência em
público, ou quando escrevo, a combater o sentimentalismo por ser pornográfico e
anti-higiénico, mas o certo é que pessoalmente sou uma espécie de vitelo
sentimental evanescente. Quando estou sozinho, às vezes rio-me – ou às vezes
cai-me uma lágrima desprovida de qualquer justificação racional, contrária a
todas as exigências da razão que defendo perante as pessoas. Aconteceu-me
entrar numa igreja e começa a chorar copiosamente, e isso mesmo me aconteceu a
ler um livro, como espectador num teatro ou folheando um jornal. Folheando um
jornal, não é literalmente grotesco? É um facto certo. Um outro aspecto: tenho
uma certa fama de homem forte e suponho – para dizê-lo como Stendhal – de tête brulée. Mas a realidade é muito
diferente. Perante muitas coisas, sou de uma debilidade ridícula. Uma gota de
sangue, a dor física, a presença de um morto, a observação de uma injustiça, a
desgraça de um amigo, a visão de uns olhos tristes, submergem-me num estado de
debilidade tão excitante e dolorosa que a sinto de uma maneira física. Na
realidade, só sou forte para aparentar – quando estou em público – que tenho o
sentido do ridículo desperto.
O homem poderia ser
sincero se fosse sempre igual a si próprio: enquanto for em público – falo de
um homem normal – tão diferente como é ao encontrar-se consigo mesmo, enquanto
não houver entre estes dois seres vivos que levamos dentro uma solução de
continuidade, visível e permanente, a expressão da sinceridade é impossível.
Então, o que se
deve pensar da intimidade? Et cetera.
Josep Pla, “O Caderno
Cinzento”
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