sábado, novembro 24, 2018

... porque todos são brancos!

A grande sem-razão desta injustiça declarou Salomão em nome alheio com uma demonstração muito natural. Introduz a Etiopisa, mulher de Moisés, que era preta, falando com as Senhoras de Jerusalém, que era brancas, e por isso a desprezavam, e diz assim: Filiae Jerusalem, nolite considerare quod fusca sim, quia decoloravit me Sol [Ct 1, 4-5 – “Filhas de Jerusalém (...), não estranheis eu ser morena, foi o sol que me colorou”]: “Se me desestimais, porque sois brancas, e eu preta, não considereis a cor, considerai a causa: considerai que a causa desta cor é o Sol, e logo vereis quão inconsideradamente julgais”. As Nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do Sol. E pode haver maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, e homens, que cuidar eu que hei de ser vosso Senhor, porque nasci mais longe do Sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nasceste mais perto?
 Dos Magos, que hoje vieram ao Presépio, dois eram brancos, e um preto, como diz a tradição: e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltasar, por serem brancos, tornassem livres para o Oriente, e Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda que fosse de São José? Bem o poderá fazer Cristo, que é Senhor dos Senhores: mas quis-nos ensinar que os homens de qualquer cor todos são iguais por natureza, e mais ainda por Fé, se creem, e adoram a Cristo, como o Magos. Notável coisa é que sendo os Magos Reis, e de diferentes cores, nem uma, nem outra coisas dissesse o Evangelista! Se todos eram Reis, porque não diz que o terceiro era preto? Porque todos vieram adorar a Cristo, e todos se fizeram Cristãos. E entre Cristão, e Cristão não diferença de nobreza, nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza, porque todos são filhos de Deus, não há diferença de cor, porque todos são brancos. Essa é a virtude da água do Batismo. Um Etíope se se lava nas águas do Zaire, fica limpo; mas não fica branco: porém na água do Batismo sim, uma coisa, e outra: Asperges me hyssopo, et mundabor [“Aspergir-me-ás com o hissope e ficarei limpo”]: ei-lo aí limpo; Lavabis me, et super nivem dealbador [Sl 50, 9 – “Lavai-me, e ficarei mais branco que a neve”]: ei-lo aí branco. Mas é tão pouca a razão, e tão pouca a Fé daqueles inimigos dos Índios, que depois de nós os fazermos brancos pelo Batismo, eles os querem fazer escravos por negros.
Padre António Vieira, “Sermão da Epifania” – Na Capela Real, Ano 1662


A biblioteca


A biblioteca
O meu pai tornou-se a biblioteca. Será um sítio perigoso de penetrar. No seu tempo, foi o proeminente dramaturgo e académico. As suas memórias de infância da biblioteca, porém, revestiram-se de grande interesse para a Asphodel, e ele tem trabalhado arduamente na construção desta nova biblioteca desde que entrou para aqui. A biblioteca da sua infância continua a existir na pequena cidade onde cresceu, uma antiga e pitoresca biblioteca de província feita de grés vermelho com aldrabas e maçanetas de bronze nas portas e uma grande mesa de carvalho escurecido, onde se faz a requisição e a devolução dos livros. Ele recordava-se de cada centímetro; mais: ele recordava-se de cada biblioteca onde tinha estudado em jovem, e depois mais velho, quando se tornou um tipo de pessoa que usava exclusivamente as bibliotecas e comprava livros verdadeiros, dos antigos, feitos de papel, letra impressa, cola. Conhecia-lhes o cheiro e o peso, a textura das suas capas. Os livros que ele não conhecia era capaz de imaginar com pormenores convincentes. Todos os livros do mundo foram há muito tempo trazidos para o nosso universo por via de digitalização automática, pelo que só é preciso o pensamento adequado, um pensamento operativo, para preencher aquelas cifras tangíveis, mas vazias, de livros com palavras. É isso então que o meu pai faz. Tem a biblioteca na cabeça. Está a enchê-la com um número infinito de livros em que se pode entrar, esconder-se, de que pode fazer parte sempre que queira. Assassiná-lo naquela biblioteca será talvez impossível, mas é preciso. Eu tenho de espantá-lo e matá-lo. Torná-lo completamente vulnerável e aberto. A sua mente deve estar completamente relaxada, de tal maneira que não consiga aparar o golpe quando eu atacar. E o golpe deve ser sério e fatal. Não pode ser apagado aos poucos, tem de ser de uma vez. Um golpe. Instantâneo. Tem de reverter. Rebentar. Desintegrar-se. Apagar-se.
Louise Erdrich, “Domínio” [Granta em Língua Portuguesa | 2]

domingo, novembro 11, 2018

Trás-os-Montes, o Nordeste

Devido talvez à longa ausência, quando cheguei surpreendeu-me, quase diria me assaltou, o cheiro da terra transmontana, o odor que se me deve ter entranhado à nascença e agora aspiro com a satisfação de viciado a quem faltou a droga.
Há aí retalhos de memória e alguma fantasia, pois desapareceram os montes de estrume a fumegar, não se vêem cagalhetas nem bostas, nenhum forno coze pão. Todavia, sem que os chame, esses cheiros antigos vêm de mistura com os de resina e terra seca, dos eucaliptos, das encostas que são mares de esteva, giesta, urze e rosmaninho.
Para mim continua no ar o relento de terra lavrada, do fumo acre de lenha a arder, mosto, figos, maçãs podres, bedum, o calor cheiroso das vinhas ao fim da tarde, o das pedras torradas pelo sol de Agosto.
Ontem, ao rever o lugarejo onde nasci, desabitado há vidas e que dentro em pouco se afundará na albufeira da barragem do Sabor, mais do que serem vivas as recordações, todas me chegaram acompanhadas de cheiros: o de pólvora na roupa de meu Pai, do soro de leite nas mãos da Felisbela a fazer queijo, do sabão de potassa, o das chouriças a defumar.
Há muito que tudo ali é abandono, fim, em parte nenhuma vi, nem poderia ver, candeeiros de petróleo ou lampiões de azeite, botas ensebadas, feno, a palha húmida, a urze repisada do mijo das bestas para fazer estrume, mas a cada porta de casebre, nos muros arruinados, no que ainda está de pé do que foi a nossa casa, por toda a parte me acompanhou, penetrante, a memória desses cheiros, como se por instantes fosse devolvida a parte de mim que há muito cientemente descartei.
J. Rentes de Carvalho, “O Meças”


quinta-feira, novembro 01, 2018

Os rios de Portugal: barragens!



Os rios em Portugal eram belos e selvagens, um exemplo para a juventude, corriam livres e esbanjavam tudo na Primavera, para desaparecerem entre as pedras no Verão. Até que saiu um decreto para conter o esbanjamento dos rios nacionais – Temos de impor um certo grau de civilização aos rios, um rio que queira circular no território europeu terá de cumprir as regras da boa gestão dos recursos. Vamos adoptar o sistema: um rio – duas barragens. Será a marca da democracia em todos os rios, até nos mais recônditos vales construiremos as infra-estruturas a que todos os rios têm direito num país civilizado. Os nossos rios ordenados serão um grande motivo de orgulho.
Tiago Patrício, “Checoslováquia”