A biblioteca
O meu pai tornou-se
a biblioteca. Será um sítio perigoso de penetrar. No seu tempo, foi o proeminente
dramaturgo e académico. As suas memórias de infância da biblioteca, porém,
revestiram-se de grande interesse para a Asphodel, e ele tem trabalhado
arduamente na construção desta nova biblioteca desde que entrou para aqui. A
biblioteca da sua infância continua a existir na pequena cidade onde cresceu,
uma antiga e pitoresca biblioteca de província feita de grés vermelho com
aldrabas e maçanetas de bronze nas portas e uma grande mesa de carvalho
escurecido, onde se faz a requisição e a devolução dos livros. Ele recordava-se
de cada centímetro; mais: ele recordava-se de cada biblioteca onde tinha
estudado em jovem, e depois mais velho, quando se tornou um tipo de pessoa que
usava exclusivamente as bibliotecas e comprava livros verdadeiros, dos antigos,
feitos de papel, letra impressa, cola. Conhecia-lhes o cheiro e o peso, a
textura das suas capas. Os livros que ele não conhecia era capaz de imaginar
com pormenores convincentes. Todos os livros do mundo foram há muito tempo
trazidos para o nosso universo por via de digitalização automática, pelo que só
é preciso o pensamento adequado, um pensamento operativo, para preencher
aquelas cifras tangíveis, mas vazias, de livros com palavras. É isso então que
o meu pai faz. Tem a biblioteca na cabeça. Está a enchê-la com um número
infinito de livros em que se pode entrar, esconder-se, de que pode fazer parte
sempre que queira. Assassiná-lo naquela biblioteca será talvez impossível, mas
é preciso. Eu tenho de espantá-lo e matá-lo. Torná-lo completamente vulnerável
e aberto. A sua mente deve estar completamente relaxada, de tal maneira que não
consiga aparar o golpe quando eu atacar. E o golpe deve ser sério e fatal. Não
pode ser apagado aos poucos, tem de ser de uma vez. Um golpe. Instantâneo. Tem
de reverter. Rebentar. Desintegrar-se. Apagar-se.
Louise Erdrich, “Domínio”
[Granta em Língua Portuguesa | 2]
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