A grande sem-razão
desta injustiça declarou Salomão em nome alheio com uma demonstração muito
natural. Introduz a Etiopisa, mulher de Moisés, que era preta, falando com as
Senhoras de Jerusalém, que era brancas, e por isso a desprezavam, e diz assim: Filiae
Jerusalem, nolite considerare quod fusca sim, quia decoloravit me Sol [Ct
1, 4-5 – “Filhas de Jerusalém (...), não estranheis eu ser morena, foi o sol
que me colorou”]: “Se me desestimais, porque sois brancas, e eu preta, não
considereis a cor, considerai a causa: considerai que a causa desta cor é o
Sol, e logo vereis quão inconsideradamente julgais”. As Nações, umas são mais
brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais
remotas do Sol. E pode haver maior inconsideração do entendimento, nem maior
erro do juízo entre homens, e homens, que cuidar eu que hei de ser vosso
Senhor, porque nasci mais longe do Sol, e que vós haveis de ser meu escravo,
porque nasceste mais perto?
Dos Magos, que hoje vieram ao Presépio, dois
eram brancos, e um preto, como diz a tradição: e seria justo que mandasse
Cristo que Gaspar e Baltasar, por serem brancos, tornassem livres para o
Oriente, e Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda
que fosse de São José? Bem o poderá fazer Cristo, que é Senhor dos Senhores:
mas quis-nos ensinar que os homens de qualquer cor todos são iguais por
natureza, e mais ainda por Fé, se creem, e adoram a Cristo, como o Magos.
Notável coisa é que sendo os Magos Reis, e de diferentes cores, nem uma, nem
outra coisas dissesse o Evangelista! Se todos eram Reis, porque não diz que o
terceiro era preto? Porque todos vieram adorar a Cristo, e todos se fizeram
Cristãos. E entre Cristão, e Cristão não diferença de nobreza, nem diferença de
cor. Não há diferença de nobreza, porque todos são filhos de Deus, não há
diferença de cor, porque todos são brancos. Essa é a virtude da água do
Batismo. Um Etíope se se lava nas águas do Zaire, fica limpo; mas não fica
branco: porém na água do Batismo sim, uma coisa, e outra: Asperges me
hyssopo, et mundabor [“Aspergir-me-ás com o hissope e ficarei limpo”]:
ei-lo aí limpo; Lavabis me, et super nivem dealbador [Sl 50, 9 –
“Lavai-me, e ficarei mais branco que a neve”]: ei-lo aí branco. Mas é tão pouca
a razão, e tão pouca a Fé daqueles inimigos dos Índios, que depois de nós os
fazermos brancos pelo Batismo, eles os querem fazer escravos por negros.
Padre António Vieira,
“Sermão da Epifania” – Na Capela Real, Ano 1662
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