Corpo, qu’ê nêgo, sa ta bái;Coraçom, qu’ê fôrro, sa ta fica...
(O corpo, que é escravo, vai;
O coração, que é livre, fica...)
Batuque da Ilha de Santiago, Cabo Verde
Citações... Acontece em leituras deparar com a frase perfeita, ou um pensamento elaborado tal qual o sentimos e gostaríamos de escrever, ou o espanto da descoberta de um conceito com o qual passamos a concordar plenamente, ou de uma ideia marcada pela incongruência do tempo, etc! É disso que se trata este blog. Não irei escrever nada de meu mas irei citar (apropriar-me) o que é de outros e que a outros pertence.
A ideia de que a Europa, ou os ocidentais, eram simplesmente os culpados e os africanos vítimas é uma simplificação abusiva e moralista da História. Em África, vive-se uma cumplicidade que sempre existiu entre os que exploravam, os que roubavam recursos, a partir de fora, e os que eram coniventes com isso, de dentro. Essa opressão sempre foi feita a duas mãos. E o que acontece hoje com algumas elites africanas é a continuação desse percursos. Obviamente esta leitura não interressa a essas elites. Convém-lhes fazer renascer essa exaltação de África como um continente único, com laços de unidade que são mais inventados do que reais.
Ter uma terra quer dizer não estar só, saber que na gente, nas plantas, na terra, há qualquer coisa de nosso, que mesmo que estejamos ausentes espera por nós.
Infelismente os povos que foram colonizados continuam sendo-o após a descolonização formal porque as leis dos colonizadores continuam a governar as nossas vidas. Os colonizadores definiram-nos como povos sem História e sem civilização e procuram impor-nos não só a sua própria História como a sua cultura, sem se preocuparem em saber se eram pelo meno adaptáveis a nós (...) Ora num país como Cabo Verde, nascido de uma miscigenação até agora ainda ignorada nas suas origens, porque, se mais ou menos conhecemos as influências europeias, ainda muito pouco sabemos das diversas culturas africanas, que nos formaram, importava fazer-se um estudo aprofundado, implicando todos os ramos das ciências humanas, para efectivamente se conhecer que povo somos e que cultura temos para saber que leis se adaptam àquilo que somos.
no santuário de Nossa Senhora dos Remédios. Vi uma velha fazer de joelhos todo o percurso da alameda, amparada a um pau, com uma vela e um rosário, em suor, linda, exausta, muda, rezando baixo, com os joelhos em sangue que já tinham rasgado a estamenha da saia, e as pontas em bico dos seus tamancos de pau deixavam na areia dois ziguezagues de riscos, que eram os hieróglifos da sua vida de miséria.
As pedras que Bam arranjara eram provenientes de outra tentativa para construir qualquer coisa que caíra em ruínas. Era assim que as pessoas viviam ali, reajustando os seus magros recursos aos principios fundamentais da natureza, deixando que as paredes de barro se afundassem no barro e utlizando, depois, esse mesmo barro para outras paredes, noutra clareira, entre outras rochas convenientes.
A Holanda, pensou Van der Volk, com o seu inesgotável abastecimento de bons funcionários, dispunha de uma poderosa máquina, de que ele fazia parte. O problema com a Holanda era, sem dúvida, o facto de a máquina ser demasiado boa. Era tão pormenorizada, tão aperfeiçoada, tão rigidamente couraçada contra ataques ou pressões, que, se descarrilasse, levaria um ano a entrar nos carris. Ninguém pode improvisar, ninguém pode imaginar, ninguém é capaz de um esforço independente. Todas aquelas marionetas de madeira, tão perfeitamente coordenadas, sacodem-se em agonia, fazendo trejeitos e gesticulando, à espera que um supraprofissional possa puxar o fio principal.
Tornou-se quase uma arma de sobrevivência para os africanos serem capazes de misturar sabedorias, estarem abertos a religiões diferentes. É possível para um africano ter a religião de origem, “bantu” ou outra, e ser ao mesmo tempo muçulmano ou católico. Não são sistemas de pensamento que se excluam. E isso foi-lhe extremamente útil para que chegasse até hoje vivo porque foi preciso pertencer aos vários mundos que existem em África.
A nossa única companhia era a mosca, a mosca ordinária e caseira... Digno e venerável animal! Em qualquer lugar que o homem penetre, deserto, montanha, caverna – a mosca lá está. Foi este decerto o primeiro dos seres vivos que surgiu sobre a Terra. Já havia moscas para pousar no nariz de Adão. O derradeiro homem há-se morrer com uma mosca a zumbir-lhe em torno da face. E talvez haja moscas no Paraíso.
Há circunstâncias em que calar-se é mentir. Acabo de ouvir um grito mórbido e destituído de sentido: Viva a morte! Este paradoxo bárbaro repugna-me. O general Millan Astray é um eleijado. Não há cortesia nisto. Cervantes também o era. Infelismente, há hoje em Espanha demasiados aleijados. Sofro ao pensar que o general Millan Astray poderia fixar as bases duma psicologia de massa. Um aleijado que não tenha a grandeza espiritual de Cervantes, procura habitualmente encontrar consolo nas mutilações que pode fazer sofrer aos outros.
por mais de uma vez, chamei a atenção do Governo para a necessidade de desenvolver seriamente e de disponibilizar os meis necessários a uma política de cooperação e de defesa da língua portuguesa consequente. É um investimento indispensável e que se paga a si próprio, a longo prazo. Nunca se pensou nisso a sério, definindo os meios disponíveis e um plano estratégico a médio prazo para os aplicar. As verbas foram permanentemente irrisórias, recorrendo-se com frequência ao mecenato de privados. Como se tratasse para Portugal de um objectivo secundário.
Eu falo enquanto escritor de língua espanhola, a língua de um continente que é ibérico, índio e mestiço, negro e mulato, atlântico e pacífico, mediterrânico e do caribe, cristão, muçulmano e judeu, grego e latino.
A iconografia do budismo é atraente por ser alegre, pelo menos se a compararmos ao catolicismo. Será que poderíamos imaginar uma igreja católica onde, em vez de um Cristo débil, mártir, com feridas a sangrar, venerássemos um Cristo alegre, apoiado numa almofada, a olhar para o céu com um sorriso plácido? Sem dúvida que muitos complexos e culpas se teriam dissipado da nossa psique.
Falo muito do mar? Me deixe explicar, senhor inspector: eu sou como o salmão. Vivo no mar mas estou sempre de regresso ao lugar da minha origem, vencendo a corrente, saltando cascata. Retorno ao rio onde nasci para deixar o meu sémen e depois morrer. Todavia, eu sou peixe que perdeu a memória. À medida que vou subindo o rio vou inventando uma outra nascente para mim. É então que morro com saudade do mar. Como se o mar fosse o ventre que ainda me faz nascer.
Una vez me preguntaran qué era posia y me acordei de un amigo mío, e dize: “¿Poesía? Pues, vamos: es la unión de las palabras que uno nunca supuro que puderian juntarse, y que formam algo así como um misterio; y, quando más las pronuncia, mas sugestiones acuerda; por ejemplo, acordándome de aquel amigo, poesía es: “Ciervo vulnerado”.
Sou capaz de fazer a seguir um catálogo dos seus ditos infantis. (...) Fitando agora o relvado, recordo-me de como ele viu as duas metades de um verme que tinha sido dividido ao meio pela máquina de cortar relva e de que, tentando juntá-las, disse: “Olhe, papá, está aqui um bicho desatrelado”.
Certas relações harmoniosas criam-se e duram graças a um sistema complexo de pequenas inverdades, de renúncias, uma espécie de bailado cúmplice de gestos e posturas, tudo resumível no nunca assaz provérbio, ou sentença, que muito melhor lhe assenta esta designação, Tu que sabes e eu que sei, cala-te tu, que eu me calarei.
A estética náutica perdeu em alijar os barcos de vela, como a terrestre em substituir as diligências pelos caminhos-de-ferro. Um barco à vela a todo o pano é uma admirável e elegantíssima criação da fantasia utilitária. Só pela beleza das linhas vale todos os couraçados do mundo, que como os automóveis nunca perderão o tipo antipático que têm de ferros de engomar.
Se calhar foi naquele momento que aprendi que se um gigante tem de subir a um banco para nos dirigir a palavra, é porque está convencido de que é mais baixinho do que nós. Também aprendi que, quando o anão se cansa de estar em bicos de pés, ele decide que na realidade somos todos anões; só que uns mais altos do que outros.
O que é interessante é que tudo está em permanente mudança – tudo, excepto a religião. Não é possível pô-la em questão sem se correr o risco de ofender uma imensidão de pessoas. Ora, eu acho que as religiões têm uma tal influência sobre a política e sobre a evolução da sociedade que deviam ser objecto das mesmas críticas e do mesmo controlo que todas as ideologias e concepções de vida. Parece-me isso natural. Estou farto de que se cultive o respeito por ilusões só porque são rotuladas de ‘religião’! O mais importante, a meu ver, é não atracar a vida de cada um à crença numa força sobrenatural. A única coisa em que creio é no poder do Homem. Mas não sou obtuso: dêem-me uma boa razão para rever a minha posição e eu faço-o.
Faze da tua vida a história do mundo. Organiza-a como se a sorte do universo estivesse dependente dela. Só vivemos uma vez. A nossa acção será definitiva, porque nunca mais a poderemos repetir. É um jogo de vida ou de morte, e por uma vez. Se pudéssemos repeti-la, poderíamos mudar-lhe o sentido. Assim, o que fizermos será o que fizermos. E para sempre.
As fotografias atestam a existência de um crime alemão, em relação ao qual a Humanidade não conhece precedente histórico, mas não mostram os criminosos. E, embora até hoje, não saiba qual foi o papel do meu pai nesse crime, para mim uma coisa é certa: só um povo inteiro, e não um indivíduo, está em posição de exterminar todo um povo.
Durante muito tempo, acreditei – e isto talvez seja a minha versão de Sir Darius Xerxes Cama de uma quarta função da exterioridade – que em todas as gerações há umas tantas almas, chamemos-lhes felizes ou desgraçadas, que não nasceram para se integrarem, que vieram a este mundo meio separadas, sem uma ligação forte a uma família, a um local, a uma nação ou a uma raça; que pode até haver milhões, biliões de almas assim, talvez tanto de integrados como de não integrados; que, em suma, esse fenómeno pode ser uma manifestação da natureza humana tão “natural” como o seu oposto, mas que ao longo da história dos homens tem sido frustado por falta de oportunidades. E não só: porque as pessoas que dão mais valor à estabilidade e que temem tudo o que seja transitório, incerto, mutável, construíram um poderoso sistema de estigmas e tabus contra o desenraizamento como força destabilizadora e anti-social e assim conformamo-nos a maior parte das vezes, fingimo-nos motivados por lealdades e solidariedades que realmente não sentimos, escondemos as nossas identidades secretas sob a pele falsa das identidades marcadas com o selo de aprovação. Mas a verdade escapa-se nos nossos sonhos; sózinhos na cama (porque todos estamos sós na noite, mesmo quando não dormimos sós), elevamo-nos, pairamos, fugimos. E naqueles sonhos acordados permitidos pela sociedade, os nossos mitos, a nossa arte, as nossas canções, celebramos aqueles que não pertencem ao grupo, os diferentes, os fora-de-lei, os excêntricos. Aquilo que proibimos a nós mesmos, pagamos bom dinheiro para admirar num teatro ou num cinema ou nas folhas de um livro. Nas nossas bibliotecas, livrarias, ou locais de diversão fala-se verdade. O vadio, o assassino, o rebelde, o ladrão, o mutante, o banido, a mascâra. Se não reconhecêssemos neles as necessidades que não podemos preencher, não os inventaríamos vezes e vezes sem conta, em cada sítio, em todas as línguas, em todos os tempos, a cada passo.
Mas era evidente para Dorian Gray que a verdadeira natureza dos sentidos nunca fora compreendida, e que permaneceram indomáveis e animalescos unicamente porque o mundo procura submetê-los pela abstinência ou matá-los pela flagelação, em vez de procurar transformá-los em elementos de uma nova espiritualidade, em que um elevado instinto de beleza seria a característica dominante.
O que fizeram esses brancos foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acamparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós.
Façamos justiça aos que são injustamente esquecidos. A primeira fotografia “permanente” foi tirada em 1826 em Paris, por Joseph Nicephore Niepce, mas o lugar dele foi ocupado na nossa memória colectiva por aquele que veio a ser o seu colaborador, Louis Daguerre, que vendeu a invenção, a caixa mágica, a câmara, ao governo francês, após a morte de Niepce. Deve ficar pois estabelecido, sem equívoco, que os célebres daguerreótipos nunca poderiam ter sido criados sem os conhecimentos científicos de Niepce, que excediam em muito os do seu parceiro.
não cria que Deus precisasse, para apurar as almas, de lhes enviar torturas sobre torturas, com tais refinamentos, com tal dureza, que não podia ver senão como um carrasco impiedoso; se existisse um Deus desta natureza, então vinha de mais alto a fonte do mal, porque ele próprio seria no mundo um instrumento do mal.
Hay una larga tradición urbana de chivos expiatórios: las persecusiones e agresiones contra judíos, negros, árabes, gitanos, sudacas o xarnegos permiten que los frustados y agresivos cidadanos empiecen a repartir golpes contra minorias débiles y sin respuesta. Otra variante eficaz del objeto substitutivo es el deporte. La ritualización de los actos agresivos y el auto control permiten el simulacro de una luta, de una agresión entre deportistas, en la que el público participa y una nueva geración no se contenta con la violencia simulada, sino la materializa en la gradas o fuera del campo, irritados porque han comercializado su válvula de escape.
Tem esta província um fundo lastro cultural. Tem esta província uma longa crónica de amarguras e odisseias, mas preversamente enfrentadas com raro estoicismo e não menos rara dignidade, timbres do homem alentejano, como se testemunham nas personagens que habitam a nossa literatura. Tem esta província uma noção muito sua de espaço e do tempo. Nunca, como aqui, me foi dado aperceber tão soberano desdém pela impaciência, pelo falso, pelo efémero. Esta província, onde até o silêncio é altivo e o labor solene, sempre reservou e reservará surpresas a quem terá ignorado o que nela é identificação quase mística com o que, nas coisas e nos seres, existe de incompatível com a frenética alienação do transitório.
A fazer fé nas narrações autobiográficas dos cientistas, [a máquina de café] é um local estratégico em todos os laboratórios e centros de investigação. A máquina de café, que proporciona encontros de investigadores de disciplinas ou horizontes diferentes, favorece fecundos cruzamentos de ideias ou informações que, por vezes, dão origem a imprivisíveis descobrimentos ou colaborações.
As mulheres de Navajo, quando tecem as mantas, deixam na ponta um buraquinho para a alma sair; não tecem a sua alma juntamente com a manta. Sempre me pareceu que a Inglaterra tecia a alma nas suas fábricas, e em tudo o que fazia, sem deixar o buraco para ela sair... Por isso toda a sua alma está agora nas mercadorias e em mais nenhuma parte.
Quando eu era rapariguita, tinha a certeza absoluta de que as árvores e as flores eram como as pessoas e os animais. Pensavam coisas e conversavam umas com as outras. Bastaria que nós conseguíssemos esvaziar a cabeça dos outros sons, que ficássemos quietos e prestássemos muita atenção. Mas nunca conseguimos fazer um silêncio absoluto...