Desde o
Descobrimento, Portugal mandava uma legião de órfãos para o Brasil,
garantindo-lhes a alimentação; em troca, eram mediadores junto de crianças
nativas, «aprendiam a língua indígena e serviam de intérpretes para os jesuítas
e oficiais da coroa». Chamavam-lhes meninos-língua.
Clarisse Fukelman, Colóquio
Letras, número 180, Maio / Agosto 2012
Citações... Acontece em leituras deparar com a frase perfeita, ou um pensamento elaborado tal qual o sentimos e gostaríamos de escrever, ou o espanto da descoberta de um conceito com o qual passamos a concordar plenamente, ou de uma ideia marcada pela incongruência do tempo, etc! É disso que se trata este blog. Não irei escrever nada de meu mas irei citar (apropriar-me) o que é de outros e que a outros pertence.
sexta-feira, dezembro 26, 2014
quarta-feira, dezembro 10, 2014
Liberdade essencial
´
Somos livres porque
Deus nos abandonou, e há que viver e construir as nossas vidas a partir dessa
liberdade essencial.
António Ramos Rosa, “Prosas
Seguidas de Diálogos”
domingo, dezembro 07, 2014
Cresci a beijar livros e pão
Cresci a beijar
livros e pão.
Lá em casa, sempre
que alguém derrubava um livro, ou deixava cair um chapati ou uma «fatia», a
palavra que usávamos para um triângulo de pão fermentado com manteiga, o
objecto caído tinha não só de ser apanhado mas também beijado, num mea culpa
pelo desastre e me sinal de respeito. Eu era tão descuidado e mãos-de-manteiga
como qualquer criança e, portanto, nos meus anos de infância, beijei grande
número de fatias e tive também a
minha conta de livros.
Nos lares devotos
da Índia, as pessoas tinham por hábito – e ainda têm – beijar os livros
sagrados. Mas nós beijávamos tudo. Beijávamos dicionários e atlas. Beijávamos
livros da Enid Blyton e banda-desenhada do Super-Homem. Se algum dia tivesse
deixado cair a lista telefónica, provavelmente também a teria beijado.
Tudo isto aconteceu
antes mesmo de ter beijado uma rapariga. Aliás, até seria quase verdade, ou em
todo o caso suficientemente verdadeiro para um escritor de ficção, dizer que,
mal comecei a beijar raparigas, as minhas actividades relativas a pão e livros
perderam alguma da excitação que lhes era própria. Mas uma pessoa nunca esquece
os seus primeiros amores.
Salman Rushdie, “Mas Já
Nada É Sagrado?”, Granta Portugal n.º 2
terça-feira, dezembro 02, 2014
Ver a morte de olhos abertos
Deixei-me guiar
pelo meu instinto criativo. Quis entrar pela morte dentro de olhos bem abertos,
ver tudo. Vivi qualquer coisa semelhante quando estive na Guerra Colonial. Um
dia fomos acudir a uma emboscada e sabíamos que era habitual haver outra emboscada
para a coluna de socorro. Demorámos mais de uma hora a lá chegar e pelo caminho
iniciei uma contagem decrescente interior para a morte. Pensava: a minha
emboscada pode chegar na próxima curva, no outeiro seguinte, ao fundo da
estrada. E questionava-me como é que iria morrer. Foi um exercício penoso.
Lembro-me de ter concluído que podia morrer mas que não queria que os tiros me acertassem
nos olhos. Queria ver a morte de olhos abertos. A emboscada não aconteceu mas a
vontade continua.
João de Melo, em entrevista
a Luís Ricardo Duarte, JL n.º 1150
quinta-feira, agosto 21, 2014
Catolicismo vermelho
Quanto a mim, odeio
e com belo ódios esses povos acalvinados. Lutero é a sombra desse século. O
catolicismo era vermelho; o protestantismo é pior por ser incolor, é neutro e
anda na História vestido de droguete cinzento como uma farroupilha. Suprimiu os
vitrais das igrejas, não é preciso dizer mais nada, e subiu até ao queixo a
blusa das mulheres; isto aboliu os seios das santas e tudo o que punha flores
nos olhos... Os vitrais flamejantes das rainhas com veste de pedrarias, e da
nudez dos arcanjos, era um pouco de céu vivo nas ogivas. O colo nu das mulheres
a sair para fora das blusas era um pouco de amor, e portanto um pouco mais de
paraíso na parda monotonia dos dias.
Jean Lorrain, “O Senhor de
Bougrelon”
quarta-feira, agosto 13, 2014
Quero crer...
Todos pensávamos
até há pouco tempo que o progresso técnico e o avanço da ciência podiam
resolver todos os problemas, podiam ajudar a produção agrícola, iam melhorar a
sua potencialidade proteica e vitamínica, contribuindo de forma decisiva para
resolver o flagelo da fome no mundo. A miséria e os gritantes desníveis sociais
poderiam ser minorados pela inovação tecnológica, pela ciência produzida nos
nossos laboratórios, pela agricultura moderna. E, infelizmente, tudo está a
acontecer precisamente ao contrário.
A quantidade de
produtos tem de facto aumentado, pelo menos aparentemente, mas a qualidade tem
vindo a diminuir, com a exagerada utilização de fertilizantes e todo o género
de bioquímicos que, lenta mas inexoravelmente, vão degradando os alimentos,
provocando e activando enfermidades antes desconhecidas, empobrecendo os solos
e inquinando as águas. Isto sucede no chamado mundo rico, porque nos países
excluídos do progresso moderno a exploração desenfreada das multinacionais
tem-lhes levado a fome e a miséria mais desumanas. É uma situação insustentável
que mesmo nos países abastados, em rápido processo de engorda, pode levar a
profundas convulsões sociais e sobretudo a uma inadiável revolução agrícola.
Seja agricultura verde, seja biológica, algo tem de acontecer em tempo útil,
enquanto o solo arável não tiver sido completamente destruído pelos químicos
poluentes e pela urbanização selvagem. Porque é da terra que temos de continuar
a comer.
A terra, num futuro
mais próximo do que imaginamos, terá de sofrer profunda conversão. Na
recuperação dos sistemas de rega, no plantio de áreas hortícolas, no incentivo
da policultura, na redistribuição da propriedade e, sobretudo, no controlo e na
posse social da terra.
Todo este processo,
imparável a médio termo, vai necessitar outra vez de camponeses, de alguém que
saiba ainda trabalhar os campos. A terra, pela sua raridade cada vez mais
preciosa, tende necessariamente a tornar-se, não só propriedade colectiva,
como, sobretudo, um património cultural, como um bem social a preservar.
A agricultura
capitalista, no seu afã exclusivo de lucro fácil, começa a mostrar a sua
incapacidade de abastecer o seu próprio mercado e sobretudo de controlar a
qualidade. E a qualidade alimentar começa a ser a pedra de toque de uma
sociedade cada vez mais consciente e que neste sector não perdoa a ganância
desenfreada dos agentes comprometidos nas mais graves manipulações químicas ou
genéticas.
E, no entanto,
actualmente todo o sistema de comercialização continua a avaliar os géneros
alimentares pelo seu exclusivo peso-valor. Porém, muito brevemente, será
decisivo o controlo de qualidade, em que serão excluídos os pesticidas,
antibióticos, hormonas e todos os venenos químicos que hoje são incorporados ao
alimentos que consumimos diariamente.
Embora tímida, em
vários pontos da Europa, e também entre nós, em simultâneo com a concentração
em bairros urbanos periféricos dos camponeses do interior rural, é já sensível
uma sensação de clausura, um desejo de fuga da selva urbana em que se
transformaram as antigas cidades onde ainda há poucos anos era sensível e
dominante a escala humana. Os actuai e desproporcionados monstros urbanos têm
vindo a matar a sua própria razão de ser. A antiga cidade, a polis
mediterrânica – Lisboa e tantas outras – têm vindo a assistir à destruição
inexorável da sua cintura agrícola. As suas hortas e pomares, tão celebrados –
de loures, de Frielas, da Amadora – estão agora debaixo de prédios e ruas
asfaltadas, soterradas por lixeiras e esgotos. Os problemas não vêm apenas da
construção, do cimento, e sim do que tudo isso implica, como poluição da terra
e das águas. Dentro de poucos anos, toda essa gente em expansão desordenada não
vai poder aqui sobreviver. As belas cidades antigas, com os cascos históricos
que serviam de pólo aglutinador e de referência cultural, que foram a matriz da
nossa civilização, estão a ser abandonados, num estado deplorável de degradação
arquitectónica e social. Os bairros-dormitório dos arrabaldes, sem alma e sem
qualquer identidade, abrigo privilegiado da marginalidade e da violência,
proliferam como cogumelos, entregues em exclusivo aos interesses da especulação
imobiliária.
Por outro lado, as
zonas rurais do interior estão a ser sistematicamente despojadas dos seus
apoios cívicos e administrativos: as escolas fecham por terem poucos alunos, os
postos de correio desaparecem, os meios de transporte colectivos são
eliminados, os serviços sociais são centralizados, e até costumes culturais e
alimentares, fortemente enraizados, são esquecidos ou proibidos porque,
simplesmente, não se coadunam com os gostos e hábitos das anafadas sociedades
anglo-saxónicas. Tudo isto são incentivos ao abandono das zonas rurais e à
superconcentração urbana.
Quero crer, porém,
que as zonas rurais do interior, onde ainda resta terra limpa e água não
poluída, serão um crescente atractivo e que, numa só geração, irão beneficiar
de uma importante recuperação demográfica. Este movimento para o interior, se
hoje é ainda incipiente, muitas vezes apenas alimentado pelo turismo ou por um
certo romantismo de regresso à natureza, vai com certeza transformar-se num
percurso vital de populações, sobretudo jovens, que procuram sobreviver. A água
e a terra, como bens cada vez mais preciosos, a própria sociabilidade
solidária, continuam a ser indispensáveis para a alimentação do corpo e saúde
mental do ser humano, que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, não é
muito diferente do barbudo pré-histórico.
Cláudio Torres, “O Alentejo
Agrícola – um pouco de história”
quinta-feira, junho 19, 2014
quarta-feira, abril 30, 2014
A voz da floresta africana
Quando alguém entra
numa floresta africana caminhando entre a vegetação, parece ser cercado por um
silêncio misterioso mas, se tiver paciência de sentar-se sobre um tronco a
descansar e a escutar, então a voz da floresta far-lhe-á ouvir a sua voz, as
suas harmonias e as suas mensagens através da boca dos animais, das aves e dos
antepassados.
Pe. Salvatore Cammilleri,
“A Identidade Cultural do Povo Balanta”
domingo, março 09, 2014
Sobre a literatura Maria-vai-com-as-outras...
Arquei com o papel
em branco como lavrador com a jeira de terra que tem de vessar, gradar,
atafolhar, fazer produtiva mercê do sementio, e retrocedi aos caos, primeira
fase do meu artigo como do mundo organizado. Penei, suei, rangi os dentes, mas
fui avançando. A certa altura, depois de uma passagem laboriosa, de pena
suspensa ao alto a considerar com um ar miserando a minha inópia mental, senti
a cadela da fome a derriçar-me nas entranhas. Era a primeira vez que dava
sinal, mas dali em diante não me consentiu mais tréguas. Embora, naquele dia,
trabalhando por várias torturas, pude avistar a cumeada alta e agreste do
ofício de escritor! Nunca passará da cepa torta o profissional que tome as
palavras pelo seu valor bursátil, isto é, pela sua significação léxica. As
palavras são dotadas de tantas qualidades quantas as intrínsecas ao desfrute
dos nossos cinco sentidos. Possuem cor, timbre, um timbre diferente da sua
prosódia, aroma e certamente densidade. O verdadeiro escritor, quando trabalha
sobre o papel branco, procede ao seu emprego em correspondência com estes
tópicos. Simultaneamente, trata-as como notas musicais para que não desafinem;
como elementos fazendo parte duma escala cromática, para que uma página não
seja uma laude de Outono, mortiça e gregoriana. Se descrever a neve, que as
palavras voem e revoem no ar, iriadas como as flores da macieira, e se uma
sécia ou um papo-seco perfumados, que não seja preciso falar no ylang-ylang para lhe aspirar a droga.
Entre as palavras
há simpatias e repulsões instintivas como em todos os seres vivos. L’épithète doit être la maîtresse du
substantif, jamais sa femme légitime, escrevia Alphonse Daudet. Cuidado com
o relacionamento de uns termos com outros. De facto, têm a sua sensibilidade e
cada qual uma política. O pior inimigo da palavra escrita é o lugar-comum, o
possidónio, o refervido, resultantes do hábito, da vicieira de falar, do
Maria-vai-com-as-outras. Dispô-la num tauxiado imprevisto mas lógico, com
ressonância determinada e o seu mundo à espalda, eis o problema. Quanto a
ideias, temos conversado. O homem é uma máquina de pensamento, mas a secreção
mental sob o ponto de vista literário é tanto melhor quanto menos se pareça com
a do seu semelhante. O afrondoso, o díspar, o herético não destoam no haver dum
escritor original ou simplesmente digno. O oiro é sempre o mais distinto e o
mais raro. Já o pensamento de todos e de cada um é moeda de cobre que não dá para
coisa nenhuma. Era com dobrões que em Roma se comprava a salvação.
Aquilino Ribeiro, “Lápides
Partidas”
terça-feira, março 04, 2014
Esquivas delicadas do corpo...
“Gosto muito de
boxe”, disse eu. Então, Iraklis disse-me que o campeão Malangomas de Caria,
modesto homem nascido na Ásia Menor nos tempos de Cristo, ficou famoso por não
golpear nem receber golpes dos seus adversários devido às suas esquivas
delicadas do corpo (lembrei-me de Muhammed Ali, um ícone da minha geração) que
enfureciam os seus adversários e os levavam a desistir.
Jacinto Rêgo de Almeida,
“Desporto de alta competição”, JL n.º 1129 Janeiro 2014sábado, fevereiro 15, 2014
A fecundidade que há na escassez
As nossas escolas
são feitas para a aprendizagem da palavra, do discurso, do conceito, do saber
fazer. E faltam-nos mestres do silêncio, escolas que permitam aprender a não
fazer, a pausa, a interrupção, os caminhos silenciosos, a contenção. Ou seja, a
aprendizagem da arte do silêncio, a fecundidade que há na escassez, o vigor que
existe na sede. Mas toda a nossa sociedade caminha noutro sentido.
José Tolentino Mendonça, em
entrevista a Maria Leonor Nunes, JL n.º 1127 Dezembro 2013
domingo, fevereiro 02, 2014
Ao sol
Antes de 1914, as
mulheres protegiam-se do sol para não se parecerem com as camponesas; agora
fazem-se assar como pêssegos carecas para não se parecerem com as operárias.
Michel Germont, “Uma Morte
Perfeita”
sábado, janeiro 18, 2014
Adão & Eva
Toda a moral que a
humanidade erigiu durante séculos, com árduo esforço de severos filósofos e
clérigos, apenas visa conceder mais sofisticação e verniz à ideia de que a
mulher e a sua vagina estão ao serviço do homem. Quando Deus tirou uma costela
de Adão e lhe soprou para dar vida a Eva estava na verdade a criar a primeira
boneca insuflável. Ok, talvez a história bíblica não seja bem assim, mas não
parece que o homem a tenha entendido de outra maneira.
Rui Ângelo Araújo, “Os
Idiotas”
domingo, janeiro 12, 2014
toka-tchur
Não sendo tão
quente quanto alguns noutros lugares de Angola, Saurimo é um lugar quente,
desertificado, plano, de terra batida, e impõe uma exigência muito grande para
ali se ficar. Essa mesma experiência de tudo conspirar existe ali, e o
misticismo levado ao extremo. Eles acham que ninguém morre por natureza, que se
morre por inveja, por mau-olhado. Mesmo quem vive até aos 102 anos, no momento
em que morre não é de velhice, morre porque alguém lhe rogou uma praga, o
desprezou, lhe desejou a morte. Parece horrível mas é muito bonito. Eles acham
que se conseguirem eliminar as invejas, as cobiças, se conseguirem criar uma
sociedade puramente justa, vão conseguir ensinar a natureza a deixar-nos ser
eternos, porque deixou de haver razão para que as pessoas morram. Ficaremos
velhos e mais velhos porque ninguém nos quererá mal. Esta esperança define-os,
é uma forma de acreditar que o mundo vai ser melhor.
Valter Hugo Mãe, em
entrevista a Ana Sousa Dias, Ler – Livros & Leitores, n.º 128, Outubro 2013
quinta-feira, janeiro 02, 2014
...enxames de diabinhos largar pelas janelas, arrepelando-se e batendo as nádegas, furibundos
O senhor padre
Ambrósio, meu bom mestre, revestido de pluvial a lhama de prata e franja de
oiro, com o Tiago do Eido de caldeirinha à mão esquerda, brandindo a hissope
por sobre as cabeças submissas, passeou o recinto em cruz. Ao tempo que os seus
lábios proferiam a antífona asperges me,
o movimento do braço, repartindo a água com a cadência ordenada de um semeador,
afugentava dos corpos e das almas os espíritos malignos, os génios do mal e
toda a classe de potências do reino das sombras. E era ao cabo daquela prática
que os olhos ditosos de D. Ludovina, beata que floria os altares e comungava
todas as sextas-feiras, viam enxames de diabinhos largar pelas janelas,
arrepelando-se e batendo as nádegas, furibundos.
Aquilino Ribeiro, “A Via
Sinuosa”
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